Findavam os anos cinquenta. Eu, rapazote, em Campina Grande, morava com minha família na rua Afonso Campos, quase esquina com a Vila Nova da Rainha. Todos os anos havia em torno da Catedral, ali perto, na Avenida Floriano Peixoto, a festa da padroeira, Nossa Senhora da Conceição. 

Enorme e movimentada, a Festa ia da igreja até parte da rua Maciel Pinheiro. Eu e minha turma passeávamos pelo festejo contornando os coretos das bandas de músicas, vendo as barracas de tiro ao alvo, de pescarias e as mesas de roletas. Depois, os carrosséis, a roda-gigante, os balanços e os barquinhos, que encantavam a meninada. Mais à frente, as barracas de comidas típicas da Região, sempre lotadas.

O footing contava com meninas-moças —com outras não tão moças— e com casais em roupas domingueiras passeando, arrastando crianças em cordas-de-caranguejos. Senhoras e senhores que moravam na Floriano Peixoto e imediações traziam suas cadeiras Gerdau para as calçadas para participar dos festejos.

Nós, projetos de boêmios, não perdíamos a Festa, esticando até não mais poder aquelas últimas noites de dezembro. Admirávamos com olhos pidões as mocinhas que, de um modo lindo e furtivo prometiam, ao passar, redimir nossos corações muitas vezes dilacerados pelas desventuras de amor próprias da nossa idade. Tínhamos como certo que as senhoritas mais velhas, que a gente tratava, sem saber o porquê, por balzaquianas, só frequentavam o festejo da padroeira em busca de um bom casamento. 

Nos dias da Festa não faltavam “O Maracajá” e o “Cupim de Fogo”, jornalecos meio piratas, que, no meio de publicidades, quase sempre canhestras e rastaqueras, boatavam namoros, casamentos e, mais das vezes, imaginosas infidelidades. Traziam, também, mensagens de alguns tímidos como aquela à Morena de Lindas Tranças: “Quando te vejo morena/ todo branco teu vestido/ me sinto extasiado/ flechado pelo Cupido”; ou outra, para a Mulata de Olhos Claros: “Que lindo rosto moreno/o teu porte doce e ameno/me prende toda a atenção. /E se bonita te vejo/sinto na alma o desejo/de te dar meu coração”. Mensagens parecidas eram também escutadas na pronúncia aveludada de Hilton Motta, entre músicas e propagandas transmitidas pelos alto-falantes da “Voz de Campina Grande” instalados na sacada do Edifício Esial e pendurados pelos postes. Parece que estou ouvindo: “Minha loura gatinha, colei minha boca à tua/colaste tua boca na minha/deu uma coisa tão certa/ que só faca em bainha”. E, em seguida: “Severino oferece para sua Conceição essa história de amor sem fim”. E lá vinha Cauby com seu vozeirão rimando com Conceição.

Não esquecer que a Festa permitia também uma, digamos, área de lazer mais adulto. Era chamada Lagoa de Roça e ficava lá para baixo, onde a Floriano Peixoto começava a descer. Era o lugar das “moças” que não podiam se misturar com as “famílias”. Numa dessas festas, uma delas, por sinal excelente tapioqueira, se apaixonou por um dos membros da nossa corriola, Raimundo Nonato. Logo a matéria (paga por nós) saiu num dos jornaizinhos trazendo fingido constrangimento ao cearense: “Sem ilusão seu Nonato/sem pagode nem rumor/ a menina da tapioca/ consagra-te eterno amor”.

As mocinhas “de família” caprichavam na arrumação. Antes de sair de casa era obrigação tomar banho com o “Sabonete das Estrelas”, pois estavam crentes que, lavando-se com Lever, ganhariam os atributos das grandes deusas do cinema Heddy Lammar, Lana Turner, Dorothy Lamour e Elisabeth Taylor pois assim acontecia com “nove entre dez estrelas do cinema”. Mas, se os encantos que a natureza lhes havia dado não fossem suficientes, entrava em ação o xampu Halo, que “revelava a beleza oculta dos cabelos” ou o Mulsifield que, não só era perfumado, mas, também, “removia a caspa e a gordura, dando aquela limpeza total, indispensável à vida e à beleza dos cabelos”. 

Qualquer antropólogo ou sociólogo, com um mínimo de competência e conhecimento, sacaria logo que não eram apenas novos costumes e hábitos de estética e higiene que estavam sendo formados. Em jogo, diria eu, estava a própria obtenção do amor verdadeiro. E o amor verdadeiro, antes dos olhos e da boca, começava pela admiração das mãos. Mesmo sendo a sedução atributo natural das campinenses, os esmaltes da Peggy Sage faziam com que os rapazes da cidade, por mais distraídos que fossem, não resistissem à “magia das suas cores, às tonalidades provocantes e às nuances perturbadoras” daquele cosmético. Essa combinação tornava quase impossível para um de nós que estivesse na Festa não olhar para aquelas jovens e delicadas mãos. Porém, não eram apenas as mãos que, em gestos contidos e dissimulados, nos convidavam a um olhar mais demorado. As moças precisavam chamar a atenção, se possível destacando algo do que tinham de melhor: a boca. Se nem sempre ela era carnuda e sensual como a de Marylin Monroe, ou fina e delicada como a de Joan Crawford, tornava-se necessário que seus lábios passassem a ser “aristocráticos, sensuais, sinceros e quentes” pois daquela boca sairia o sim ou o não para o namoro. Era a boca que se alongaria num sorriso quando recebesse um elogio, ou se contorceria em tom de mofa quando ouvisse uma pilhéria “indecente”. Era a boca que precisava estar bem tratada para receber o beijo “dele”. Mas a jovem campinense tinha a sorte de poder contar com uma das nove excitantes cores do batom Tangee e usá-lo à noite toda, pois o batom, “com permacromo e lanolina, uma vez aplicado, permaneceria por muito tempo, conservando-se inalterado, mesmo quando a moça comesse, fumasse, mordesse os lábios ou…beijasse”. Finalmente, o “fecho de ouro”: algumas gotas do extrato “Embrujo de Sevilla”, da Myrurgia, atrás das orelhas e no misterioso entre vales dos seios.

Nós, rapazes, também nos enfeitávamos para a Festa. Vestíamos linho, gabardine ou casemira, sem desprezar, é claro, o algodão, comprados na “Nações Unidas”, da rua Maciel Pinheiro. Saíamos de casa com as caras lisas, barbeadas com o creme “Williams”, e passávamos um pouco de “Petróleo Juvena” para “tonificar e perfumar” os cabelos. Para enfrentar qualquer ventania dos altos da Borborema nossa confiança se concentrava no fixador “Gumex”. Isso porque “Dura Lex sed Lex, nos cabelos, só Gumex”. De sapatos Clark, ternos, gravatas e bem penteados, já podíamos sair a passeio, como audazes conquistadores. 

E, tudo isso, ao som profundo e emocionante de Vicente Celestino cantando, na Voz de Campina Grande, seu sucesso maior “O Ébrio”:

“Tornei-me um ébrio e na bebida, busco esquecer

Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou

Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer

Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou… ”

FIM