O Brasil já nasceu sob o signo dos privilégios. Na expedição de Pedro Álvares Cabral apenas três, dos 13 comandantes de naus, eram navegadores experientes – Bartolomeu Dias, seu irmão Diogo e Nicolau Coelho. Sendo escolhidos, a partir de uma complexa teia de relações sanguíneas, os restantes. A começar pelo próprio Cabral. Que nunca havia navegado antes e nunca mais comandaria um navio. Merecendo esse posto em razão dos vínculos que a família mantinha com a Coroa. Fosse pouco e, desde Alvará de 06 de maio de 1536, a pena para velhacos, em Portugal, passou a ser o “desterro para o Brasil”.
Exemplo dessa cultura de privilégios deu inclusive Caminha, ao encerrar sua famosa carta: “Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, e a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé Jorge d’Osoiro, meu genro, e o que d’Ela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza, hoje, sexta-feira, 01/05/1500”. Não tendo tido entretanto a chance de ver que sua bajulação acabou atendida (em 1501) – dado ter morrido antes, em Calicute, pelas mãos de árabes e hindus. Azar o dele, sorte de seu destrambelhado genro.
Engraçado é que Caminha, sem querer, foi responsável pelo mito do bom selvagem, que tanto impressionou os pensadores da época. Ao falar da terra “na qual as gentes viviam nuas, como na primeira inocência, mansas e pacíficas”. Visão que se prolongaria até Montaigne e Rousseau, ardorosos defensores da tese da superioridade do homem natural sobre o civilizado. Faltando só dizer que foi inspirado na história de 24 homens simples – deixados por Américo Vespúcio, em Cabo Frio, para ser levados a Fernando de Noronha – que Thomas Morus pensou a sua ilha de Utopia. Não tendo o desafortunado Morus jamais sabido que ditos 24 exilados sequer chegaram a sair da feitoria onde estavam. Todos mortos, que foram, pelos maus selvagens de Arariboia (Martim Afonso de Sousa), chefe da tribo dos Temimimós. Sem falar que, pouco depois, iria perder a cabeça. Literalmente. Mas essa é outra história.
Conhecido provérbio do Brasil colônia dizia “Os gentios do Brasil não pronunciam as letras R, L e F; porque não possuem nem Rei, nem Lei, nem Fé”. Mas isso, hoje, está já em desuso. Que Rei temos, o maior de todos, Pelé. Lei também temos, até demais, embora só valham aquelas que o Supremo quiser. E sobretudo temos fé. Uma fé generosa e implausível em nosso futuro que, ao menos até agora, ainda sobrevive. No caminho que as coisas vão, até quando?
Bela crônica da história do Brasil, mas dá tristeza. Uma versão da ideia do “bom selvagem” está de moda adaptada a este século XXI, na ideia de que os indígenas devem ficar intocados e preservada em sua pureza a cultura deles, por ser natural e de defesa da floresta, por oposição à “civilização ocidental que está destruindo o planeta”. Ainda não perceberam, com os antropólogos, que a essa altura os indígenas só vestem alguma versão da roupagem tradicional quando vão a Brasilia reclamar mais terras, e que é desumano deixa-los abandonados como museu a céu aberto.
Aproveito para parabenizá-lo por virar mais imortal ainda na ABL, pois imortal já era na APL. O presidente Marco Luchesi reanimou a ABL, e agora vai ficar mais animada ainda com Fernanda Montenegro, Gilberto Gil, José Paulo Cavalcanti Filho, e Merval Pereira futuro presidente.