A partir de questionários aplicados a 519 cientistas políticos residentes no país e no exterior, no ano de 2018, professores da Universidade Federal do Paraná[1] classificaram os partidos políticos brasileiros, segundo sua posição ideológica, numa escala de zero a dez, em que zero representava posição mais à esquerda e dez, mais à direita[2].
Longe de enveredar pelas infindáveis discussões acadêmicas que envolvem os conceitos de direita e esquerda[3], e muito menos pretender cotejar metodologias de classificação partidária de posições ideológicas, o presente texto se vale do relevante estudo da UFPR como referência empírica para melhor compreender as dificuldades que envolvem a celebração de federação de partidos para as eleições de 2022.
Registre-se, ab initio, que no pleito de 2018, em todos os estados brasileiros, à exceção do Rio de Janeiro, os partidos classificados no estudo como de esquerda (PCdoB e PT) e centro esquerda (PDT e PSB) celebraram alianças com um ou mais partidos de espectros à direita para eleição de governadores.
Mais recentemente, na disputa de 2020, o mesmo fenômeno ocorreu na eleição municipal: as mesmas siglas à esquerda estiveram juntas com outras à direita em coligações para prefeito em todas as capitais do país (menos em Florianópolis e Rio de Janeiro).
Não é de todo ousado inferir que o mesmo tenha acontecido na larga maioria dos 5.568 municípios brasileiros na eleição de 2020[4]. Há fortes indícios indicativos dessa possibilidade, conforme aponta trabalho do cientista político Humberto Dantas[5], que catalogou dados junto ao TSE sobre as alianças partidárias que se formaram em 2012 na eleição para prefeito nos municípios brasileiros.
Dos 10 maiores partidos à época, cada um do “campo” da esquerda (PT, PSB, PDT) esteve junto em aliança em torno de uma mesma candidatura a prefeito com partidos do “campo” oposto, nunca menos que em 1.000 municípios. Por exemplo, o PT com o PP (aliados em 1.531 municípios), com o DEM (1.041), com o PR (1.402), com o PSDB (1104), etc. A mesma coisa com as alianças do PSB e PDT. É de se imaginar que nas eleições de 2016 e de 2020 o mesmo diapasão se haja mantido, com incidências numéricas aproximadas.
Esse breve mosaico de letras misturadas ressalta a natureza incoerente e inorgânica dos partidos brasileiros e sua descarada sustentação pragmática em conveniências eleitorais[6]. Não é à toa que as federações partidárias, agora definitivamente legitimadas pela decisão colegiada do STF na quarta-feira (9/02), estão tendo tantas dificuldades de se formarem[7].
Com efeito, para se apresentarem como não sendo meras replicações das coligações proporcionais, as federações incluíram na sua lei de criação dois dispositivos de disfarce: (1) a abrangência nacional da aliança (verticalidade) e (2) a exigência de um mínimo de 4 anos de união federada.
Estava assim ancorada para seus idealizadores a narrativa que distinguia o novel mecanismo das antigas coligações: a confederação não era composta diversamente em cada localidade e nem tampouco efêmera, que se desfazia assim que terminavam os pleitos. A narrativa foi convincente, conforme se depreende da decisão do STF.
Os dois dispositivos que dão base discursiva de “união programática” aos defensores da novidade eleitoral são ao mesmo tempo os obstáculos à concretização dessa mesma união por conta da complexidade dos arranjos políticos locais e da negociação que perpassa duas eleições, uma geral e outra municipal.
Definitivamente, é muito difícil conciliar os dois requerimentos da federação diante de painel partidário tão descaracterizado programática e ideologicamente.
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Maurício Costa Romão, é Ph.D. em economia pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. [email protected]
[1] Bolgnosi, B., Ribeiro, E. e Codato, A., in “Esquerda, centro ou direita? Como classificar os partidos no Brasil”, Observatório das Eleições, Laboratório de Partidos Políticos e Sistemas Partidários, UFPR, novembro de 2020.
[2] Sem considerar a atribuição de nota a cada um dos 35 partidos na escala, PSTU, PCO, PCB e PSOL foram classificados como de extrema esquerda, PCdoB e PT de esquerda, PDT e PSB de centro-esquerda, REDE, PPS (Cidadania) e PV de centro, e os demais de centro-direita e de direita.
[3] Há, todavia, posições mais pragmáticas no que tange a esses rótulos, como a do coronel Aureliano Buendía, em “Cem anos de solidão”, quando disse que a diferença entre liberais e conservadores em Macondo era a de que os liberais iam à missa das cinco e os conservadores iam à missa das sete horas…
[4] Segundo o IBGE há 5.570 municípios no Brasil. Entretanto, não ocorrem eleições municipais em Fernando de Noronha e Brasília.
[5] Dantas, H (2013). Cadernos Adenauer, xiv, nº 2, pp. 127-145.
[6] Em uma crônica escrita em setembro de 1878, intitulada “Coligações”, Machado de Assis disserta sobre a aliança entre dois partidos na comarca de S. Vicente, de cujo texto são extraídas as seguintes passagens:
“Dizem os alemães que duas metades de um cavalo não fazem um cavalo. Por maioria de razão se pode dizer que metade de um cavalo e metade de um camelo não fazem nem um cavalo nem um camelo”.
No caso dos dois partidos, continua Machado: “…ignoro o modo pelo qual as duas metades dos dois programas foram coladas às metades alheias. …O ponto mais obscuro deste negócio é a atitude moral dos dois partidos, a linguagem recíproca, as mútuas recriminações. Cada um deles vê no adversário metade de si próprio. O nariz de Aquiles campeia na cara de Heitor. Bruto é o próprio filho de César. …Nenhum deles podia acusar o outro de se haver ligado a adversários, porque esse mal ou essa virtude estava em ambos; não podia um duvidar da boa-fé, da lealdade, da lisura do outro, porque o outro era ele mesmo, os seus homens, os seus meios, os seus fins”.
[7]Tanto assim é que, a estas alturas do calendário eleitoral, nenhuma federação foi ainda constituída, apesar de haver tratativas relativamente avançadas de concretização em algumas hostes. Na lei das federações (Lei 14.208/2021) a constituição de qualquer federação poderia ser feita até a data final do período de realização das convenções partidárias (vide art. 11-A, § 3º, Inciso III), isto é, até 5 de agosto 2022. Na reunião plenária do dia 9/02, o STF definiu que o prazo de registro das federações seria até 31 de maio do corrente.
Explicação muito clara do caos partidário e da dificuldade de formar “federações” de partidos. A possibilidade de formar federações foi pensada para contornar a clausula de barreiras, e por isso foi votada no Congresso. Espero que Mauricio Costa Romão esteja certo sobre a quase impossibilidade de cumprir as condições para formar federações, pois assim os pequenos partidos de aluguel não escaparão da cláusula de barreira.