Ao propor a dolarização da economia argentina como forma de cessar a escalada inflacionária do país, o deputado Javier Milei, possível candidato à presidência, acirrou os debates sobre o assunto no país vizinho.
A ideia do parlamentar é esculpida dos manuais clássicos de economia: todos os processos de hiperinflação no mundo tiveram duas características comuns: (1) foram acompanhados por um acentuado grau de dolarização das economias envolvidas e (2) terminaram abruptamente, ensejando rápida estabilização de preços (a Alemanha tinha uma inflação de 30.000% em outubro de 1923 e em janeiro seguinte a inflação foi negativa, de -7%).
Como ocorre esse fenômeno? Na medida em que a inflação se acelera, a população começa a buscar mecanismos protetores dos valores nominais e passa a usar vários indexadores como referência para fixação de preços.
Mas esses índices, baseados na inflação passada, perdem logo a capacidade de refletir a evolução dos preços, exceto a taxa de câmbio, que espelha mais rapidamente tal trajetória e está disponível em base diária. A cotação do dólar no paralelo passa cada vez mais a ser a referência para determinação dos preços internos.
A maior parte das transações ainda é feita em moeda local, que preserva sua propriedade de meio de pagamento, mas perde a de reserva de valor (ninguém mais guarda a moeda local) e a de unidade de conta (tudo passa a ser cotado em dólar). A cotação do dólar, quer dizer, o próprio dólar, agora, é o padrão comum de preços e valores. Dá-se afinal a dolarização da economia.
A essa altura, como a maior parte da população utiliza o dólar como unidade de conta, e até mesmo como meio de pagamento, a taxa de inflação na moeda interna é cada vez menos representativa para a sociedade. O ambiente está pronto para o golpe final na inflação quando se fixa a taxa de câmbio entre a moeda doméstica e o dólar.
Como todos os preços estão sendo reajustados pelas variações da taxa de câmbio, quando esta taxa é congelada a inflação na moeda nacional cessa instantaneamente. Acontece, finalmente, a tão aguardada estabilização de preços, graças à dolarização.
A estabilidade de preços segundo descrito acima, pressupõe: (a) que a economia já esteja suficientemente dolarizada, no sentido de indexada ao dólar, e (b) que haja garantia de conversibilidade, isto é, que a troca da moeda nacional pelo dólar seja feita sem restrições.
Sobre a condição (a), a economia argentina tem histórico de ser “bimonetária”, quer dizer, embora o peso seja a moeda de curso legal, vários ativos duráveis, produtos e serviços são referenciados em dólar. Ademais, diante da instabilidade atual, o dólar no paralelo – o dólar blue – baliza o dia-a-dia dos argentinos para determinação de preços internos. A economia tornou-se refém das idiossincrasias do mercado paralelo de câmbio.
Ainda assim, com toda a cultura de convivência com o dólar, a Argentina não é uma economia suficientemente dolarizada para o sucesso de uma estabilização de preços nos moldes clássicos.
A ausência dessa pré-condição, todavia, pode ser suprida pela dolarização induzida, ao se acelerar a transição da moeda local para o dólar via continuada depreciação cambial. O custo social e econômico da medida, todavia, pode ser explosivo.
No que concerne à condição (b), o país precisaria ter reservas de divisas para honrar a conversibilidade, pois é esperado que tão logo se fixe a taxa de câmbio os detentores dos agregados monetários (base monetária e meios de pagamento) corram para trocá-los por dólar. E reserva é tudo que o país não tem.
Sem os requisitos para uma estabilização heterodoxa via dolarização, só resta ao país até as eleições presidenciais administrar o caos com as inócuas políticas fiscal e monetária em regime de inflação alta. Reforma monetária precedida por um pacto de união nacional (concertación) é o que cabe ao novo governo.
Mauricio, muito bom o artigo. Queria sugerir outro artigo, desta vez sobre o Equador. Este país tem uma experiência estranha, mas que parece bem sucedida, quando decidiu, há vários anos, transformar o dólar em moeda corrente. Não apenas vincular a moeda nacional ao dólar com câmbio fixo, mas, simplesmente tirar o Soles (acho que era esse o nome da moeda) de circulação e passar a ter o dólar com moeda de troca e de reserva de valor. Em 2009, fui a Quito para assistir jogo do Sport na Libertadores, ninguém pode ser racional quando se trata de futebol, e fui numa casa de câmbio trocar dólares que tinha levado. Tomei um susto. Não tinha como nem porque trocar dólar por dólar que era a moeda circulante. Não sei como evoluiu de lá para cá mas a informação na época é que tinha acabado com a inflação. Parece que tinha um acordo do Banco Central do Equador com o FED americano que permitia a emissão da moeda diretamente para movimentação no país andino. Não me dediquei a estudar o assunto, não se como evoluiu até hoje. Queria sugerir (pedir, talvez) que você analisasse este fenômeno em um artigo aqui na Revista Será.
Sérgio, amigo, muito obrigado pelos comentários e pela sugestão! Vou começar a me inteirar da economia equatoriana e assim que possível escrevo algo sobre o assunto…
Fiquei curiosa: será que há coisa que dá pra fazer em um país de uns 18 milhões de habitantes que já não dá para fazer em país de de 46 milhões? Pois Costa Romão mostrou de forma convincente que na Argentina a dolarização não é possivel. Aliás, o Menem não havia tentado antes? Na Venezuela também está ocorrendo dolarização parcial.
Vocês viram que o Equador assinou esses dias um acordo de livre-comércio com a China?