Teresa Sales

Árvore em floresta tropical

Árvore em floresta tropical

Toda mata que se preza tem uma árvore de porte para lhe dar nobreza. Como o buriti gigante dos Gerais de Guimarães Rosa. Na Mata da Estrela (desses vestígios preservados da nossa ancestral Mata Atlântica), a maior mata sobre dunas do Estado do Rio Grande do Norte, esta árvore é a Gameleira (Ficus Doliaria). Ela nos foi anunciada – a Gameleira Gigante – ao início de uma trilha de oito quilômetros que percorremos nessa mata, sob a competente batuta do guia José Maria.

Na sua apresentação, ele deixou transparecer algo fundamental para um bom guia turístico: uma profunda identidade com a natureza, para além do conhecimento dela. Pediu-nos, coitado, a um grupo predominantemente feminino, guardássemos algum silêncio para ouvir os sons da mata. Um desses seriam os gritos (ou seria cantoria?) dos macacos Guariba. Com sorte, poderíamos ver um  grupo deles. Não tivemos essa sorte. Mas ouvimos sim a algazarra que parecia ser de muitos e era apenas do guardião do grupo.

E eis que chegamos à gameleira gigante. Para essa gameleira só nos restou um réquiem. Mais que centenária, não resistiu ao tempo e dela só encontramos o robusto tronco com raízes esparramadas pelo chão. Formou-se uma clareira no enorme círculo deixado pela sua copa. Ninguém silenciou. Bem que a centenária gameleira morta merecia essa reverência. Maior silêncio do que para ouvir os macacos. Pois a gameleira, entre nós, brasileiros, é árvore sagrada.

Zé Maria tem vinte e nove anos. Parece um menino. Fico cada vez mais curiosa sobre o nosso guia. É um jovem que reúne em perfeita harmonia o negro, o índio e o branco. Fala com fluência e usa uma quase sedução para ir desvendando a uns e outros seus sucessos no cinema (já atuou em três filmes), seus dotes de compositor de músicas que toca ao violão, seus planos de gravar o primeiro CD. No dia seguinte eu ficarei sabendo que ele tem o segundo grau completo, é filho de pedreiro e empregada doméstica, começou a ganhar dinheiro com pesca e turismo com quatorze anos, com dezesseis já estava casado e é hoje pai de cinco filhos.  

Uma árvore estranha, a Gameleira. Sem sustância para crescer sozinha, entranha-se em outras para atingir alturas. Sua preferência ali na Mata da Estrela é pelo Pau D’Óleo. À medida em que vai tirando  a seiva da sua árvore hospedeira, ela vai tomando vida até que consegue anular totalmente aquela que foi um dia com ela quase carne e osso. Não pude deixar de pensar nas relações macho e fêmea no reino animal de bichos e homens, nas complicadas relações humanas.

A gameleira ou figueira branca também é conhecida como figueira mata-pau, por essa sua característica homicida da qual depende seu crescimento. Apesar de nascer sobre outra árvore, que acaba matando sufocada, ela tem o grande mérito de dar vida à floresta, pois fornece alimento e abrigo para diversos animais, como macacos, morcegos, aves. Também é usada, como o nome diz, para fabricação de gamelas – vasilhames de madeira muito usados no interior. Pode-se ver gameleiras na arborização de grandes áreas urbanas e rurais, devido à sua sombra densa, assim como para recomposição de matas ciliares e áreas degradadas.

 

Depois do requiem à Gameleira Gigante, passamos por várias outras em nossa trilha. Impressionantes suas raízes espalhadas pela superfície ao redor, formando esculturas toscas e belas. É uma árvore que ultrapassa fronteiras em nosso território brasileiro tão diverso em climas e solos, pois encontram-se gameleiras desde o Norte do país até o Paraná, passando pelos estados centrais do Brasil.

No dia seguinte à caminhada na trilha, Zé Maria me leva  à casa de Joca, onde ele costuma se reunir com pescadores e músicos para um café, uma prosa, uma bebida, um bom fumo, uma música. Joca é um homem magro, de boa estatura, braços longos e fortes. Veste uma bermuda que se ajusta a seus quadris estreitos e está perfeitamente confortavel. O corpo é de um homem de trinta anos. Contrasta com o rosto de setenta. A idade de Joca se situa na média desses dois extremos. É nessa casa onde vou entrevistar Zé Maria.

Há uma seriedade nesse jovem pescador que contrasta com o mundo fantasioso de suas músicas. Ao contrário dele, o velho pescador João, conhecido no local por ser o rei do polvo (ou poivo, como ele prefere) dá risada, vira para mim e pergunta: “Já conhece o Bob? Vai buscar Bob, Joca”. Sou apresentada ao cachorro da casa. O terceiro velho, João Batista, ou Josa de Cândio, trabalhou sempre no campo e é hoje aposentado. Fala pouco e acompanha atentamente a conversa. 

Os assuntos se sucedem sem nenhuma ordem. De comum entre todos, a boa erva. Joca quase não se senta ao redor da mesa onde estamos, atitude de dono da casa cuidando para que tudo esteja nos conformes. Alison “da Lan house, da Prefeitura”, apresentado por Zé Maria como o cabeça digital da cidade, está ali, porém, como “Alison sanfoneiro”. Além de Zé Maria e Alison, chega atrasado o terceiro jovem do grupo, Elton, tecladista. É do time de Hermeto Pascoal apenas na cor da pele e do cabelo. Faz parte do Forró Formosa, que ele define assim: “faz o gênero de música forró ostentação, música para se balançar, ao estilo forró quebrado”. Elton, que parece o menos sonhador de todos, diz que é o mercado quem vai levando a sua banda. Fica-me a certeza de que eu não apreciaria essa banda de forró.  

Não levei meu gravador nem bloco para anotações. Carrego comigo uma socióloga pesquisadora que costuma invadir meus espaços de lazer. Caneta eu tinha. Papel, Joca improvisa o verso de um pacote velho de fubá. Foi uma manhã cheia de magia. Fiquei conhecendo, mais do que a vida, os sonhos daqueles homens, pescadores, agricultor e músicos reunidos na casa de Joca. Eles me permitiram entrar na sua humilde confraria. 

A Gameleira é uma árvore sagrada porque assumiu aqui no Brasil o lugar do Irôco (Cholropho Excelsa) na África. O povo yorubá cultua esta como parte de seus rituais e crenças. O Irôco é uma árvore majestosa, chamada na África de língua portuguesa de “Amoreira africana”. Como no Brasil não existe esta árvore, o povo do cadomblé nomeou a Gameleira sua sucedânea. Aqui, é na gameleira onde habita a entidade Irôco.

“Nos terreiros, costuma-se manter uma dessas árvores como morada de Irôko, assinalada por um “ojá” (laço de pano branco) ao seu redor. Irôko representa a ancestralidade, os nossos antepassados, pais, avós, bisavós etc, representa também o seio da natureza, a morada dos Orisas. Desrespeitar Irôko (a grande e suntuosa árvore) é o mesmo que desrespeitar a sua dinastia, os seus avós, o seu sangue.  Irôko representa a história do Ylê (casa), assim como do seu povo, protegendo-o sempre das tempestades” (Pierre Verger, Fatumbi).

As composições musicais de Zé Maria são singelas histórias de amor e desamor repletas de lugares comuns. Aposto em um futuro incerto, talvez depois de ele morar em outros lugares, em que pudesse aproveitar nas suas composições as histórias e os mitos da Mata da Estrela. Como o do choro do menino pagão. No tempo em que as lavadeiras usavam as lagoas nessa mata para lavar roupa, nesse tempo aconteceu de uma delas dar à luz um menino no meio do caminho. Ainda hoje tem lá um amontoado de folhas e gravetos aonde teria sido enterrado o corpo da criança morta. Quem passar por lá à noite ouvirá o choro desse menino pagão que dá nome ao lugar. Zé Maria não compra o fantástico do mito, desmistifica-o: existe um pássaro chamado localmente “alma de gato”. Seu canto noturno é que lembra o choro de uma criança récem nascida