Fernando Dourado

Mostar Bridge viewpoint, Bosnia and Herzegovina.

 

Rino Cosentino chegou tão eufórico a Sarajevo que não se apercebeu que o hotel Grand ficava a pequena distância da estação rodoviária. A viagem tinha durado quase dezoito horas, mas valera cada segundo pois começou na Macedônia, contornou o Kosovo, continuou pela Sérvia e transitou pela Croácia, antes de adentrar aquele país de nome composto, pródigo em chuva e bruma. Rino amava fronteiras. O taxista que aguardava os passageiros ao pé do compartimento de bagagens do ônibus, fingiu ignorar que o hotel distava não mais de quinhentos metros dali. Assim sendo, pegou sua mala com atitude e valorizou a distração momentânea do viajante, fazendo um trajeto apenas um pouco mais longo, indo até a altura da embaixada dos Estados Unidos, de onde retomou a rota linear, sem que o taxímetro registrasse quase nada além da bandeirada. O passeio era só uma reparação moral. Para Rino, pois bem, que ele inflasse a tarifa em quanto quisesse. Estar ali já representava muito e pequenas contravenções eram toleradas.

 

O hotel ficava na parte mais alta de uma colina, e era tão feioso quanto a maioria dos edifícios construídos na época do socialismo. Mas o recepcionista que ficava meio escondido por trás das bandeirinhas de todos os países, engenhosamente espetadas num globo de madeira perfurado como um porta-pirulito, era homem simpático, quase caloroso, e disse a Rino que lhe daria um apartamento superior ao da tarifa reservada. Lá chegando, uma faxineira suada, de pronunciados traços eslavos, ultimava os preparativos da cama e dispunha as toalhas no banheiro. A presença dele a deixou visivelmente desconfortável, mas o encontro de ambos não durou mais de dois minutos de tensão. Tão logo ficou só, Rino abriu a janela e deixou que o frio de zero grau arejasse os vestígios de nicotina que a camareira exalara pelos poros. A vista não era grande coisa. Mas o preço não podia ser melhor e não lhe importava caminhar meia hora até o centro da cidade. O rio Miljacka seria bom ponto de referência.

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Foi só depois de passar as coordenadas para seus poucos contatos no mundo que Rino se apercebeu estar com muita fome. O que comera nas últimas 24 horas? Muito pouco, salvo as frutas que trouxera da Macedônia e de que já não restara nada desde a travessia da última fronteira, muitas horas atrás. Estava dada a senha para que se animasse a enfrentar a garoa e saísse para oxigenar o corpo, como gostava de dizer. A primeira cena que o reteve foi a dos idosos que se aglomeravam em torno de um imenso tabuleiro de xadrez, com as peças gigantes se impondo na rua. Mas não parou por muito tempo. Sabia que seria fácil voltar ali nos próximos dias. Assim, tão logo a garoa deu lugar à chuva de pingos gelados, aportou a um restaurante apinhado onde comeu linguiça de carneiro, enormes cebolas recheadas de carne moída, ovos com espinafre e pão pita. O garçom tentara prevenir que era muita comida para uma pessoa só. Rino se saiu com a desculpa de praxe: “Estou esperando alguém. Se não vier, como só”.

 

Agora, por fim refeito e em condições de concatenar duas ideias, Rino saiu para fazer um reconhecimento nos arredores. Intuitivamente, chegara à Bascarsija, o bairro muçulmano de Sarajevo, onde lhe sobreveio a sensação de estar nas imediações do Grand Bazar, de Istambul. Consultando um mapa mural plantado nas imediações da mesquita de Gazi Husrev-Beg, o coração disparou ao constatar que apenas poucos minutos de caminhada o separavam da Ponte Latina. Por uma boa razão, talvez cara a meio mundo, vê-la e percorrê-la era o que mais queria fazer naquele primeiro dia. Pois se cada cidade tem um ícone, certamente ela era o mais eloquente da capital da Bósnia-Herzegovina. Mas Rino não tinha pressa. Nos Bálcãs, mesmo sendo março, haveria luminosidade até cinco da tarde, tempo de sobra para que se deleitasse com um chá de menta e comesse uma baklava. Se estivesse desavisado da cidade onde se encontrava, se ali tivesse descido de paraquedas, jamais diria que estava na Europa.

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Na longa caminhada que fez ao longo do rio, Rino se apaixonou pelas casas dependuradas na montanha. Nas encostas nevadas, dignas de uma cidade que chegou a sediar as Olimpíadas de Inverno, antes de sucumbir ao ódio que varreu o fim da federação iugoslava, a fumaça branca brotava das chaminés, o que deixava adivinhar lareiras e fogão a lenha. Na junção entre o bairro muçulmano e os prédios de feição austro-húngara – um bem-acabado quadro de fratura civilizacional ou, como queriam alguns, o berço do homem multicultural -, o barulhinho do rio compunha agradável trilha sonora, logo interrompida pelo olhar mais retido que Rino deitou sobre as paredes espessas das mansardas. Pois bem, muitas delas apresentavam buracos rombudos, sinal das muitas balas de fuzil que cruzaram aqueles ares em todas as direções, o que explicava a quantidade de homens mutilados que se viam nas ruas. Mas o símbolo maior da violência logo se apresentou sob a forma mais bucólica e delicada: a Ponte Latina.

 

Pois foi ao pé dela, num café, que o estudante sérvio Gavrilo Princip, membro de um complô que fracassara minutos antes na tentativa de assassinar o arquiduque Franz Ferdinand, então em visita à cidade, viu seu alvo se materializar sob vistoso chapéu de plumas, no banco traseiro do carro aberto que passava a baixa velocidade. Encantado com a sorte, eis chegado seu momento de passar para a história. Gavrilo alvejou-o à bala. Ferido de morte, o arquiduque ainda teria dito à esposa: “Sofia, fique viva para cuidar das crianças”. Foi assim que nasceu a Primeira Guerra Mundial, a mais tola e vã de todas. Princip foi preso, teve um braço amputado e morreria de tifo em 1918. Patético, mais tarde confessaria arrependimento pelo feito ao saber que o austríaco tinha filhos. Rino ficou deambulando por ali até cansar. Quando se deu conta, a escuridão baixara e sentiu cansaço. O taxista que o levou ao hotel disse: “Sempre aprendi que Gavrilo era um herói. Hoje ensinam a meus netos que foi um bandido. Ah, a História…”

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Rino Cosentino costumava ser bom companheiro de si próprio. Jamais se queixava da solidão e não temia sequer passar mal num lugar remoto, onde não tivesse a quem apelar. Achava até que seria melhor morrer assim, longe dos olhos de pessoas queridas e perplexas. Mas também é certo que vez por outra vivia situações que sequer ele podia entender. Isso porque, antes de reservar o hotel Grand – indigno do nome, mas onde se sentia bem -, pensou em se hospedar no Holiday Inn. Ora, poucos endereços poderiam ser tão mórbidos quanto este. Era de lá que os sérvios faziam tiro ao alvo nos passageiros dos bondes que transitavam pela avenida principal. Sob pretexto de facilitar o trabalho da imprensa, prometiam aos jornalistas trazer as imagens mais atrozes até eles, e assim ganhar a audiência do mundo. Quem não se lembrava do senhor que desceu do bonde e foi alvejado na cabeça? Na rua nua, ninguém ousava ir até lá prestar socorro pois sabia que seria alvo do mesmo atirador.

 

O hotel fora a base e residência do general Radovan Karadzic, que ali alojou a família. Os snipers deflagravam os tiros ao cair da tarde. Assim, as imagens da CNN alcançariam audiência global. Passando diante da fachada amarela daquele prédio que fora construído para albergar as delegações que acorreram às já aludidas Olimpíadas de 1984, Rino sentiu um laivo de desprezo por si próprio. Pois como poderia respeitar um homem que se dispunha a pernoitar por dias a fio num lugar tão tétrico? Era nisso que pensava quando tomava a sopa de tomate do Dveri. Como se atendesse a um impulso interno de reparação, foi ao museu do Genocídio de Srebrenica, cidade que fora palco do maior massacre em solo europeu desde a Guerra. Lá ouviu o áudio do carniceiro Ratko Mladic: “Hoje, às vésperas do dia do padroeiro dos sérvios, é uma alegria devolver Srebenica a eles. A eles que detiveram a expansão turca, prometo ir atrás do último muçulmano que ainda estiver por aqui”. Ao saber o que fizera o pai, a filha se matou.

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A temporada de Rino ia chegando ao fim. Como sempre fazia para coroar a estada nos locais visitados – especialmente quando a descoberta fortuita se tornara rotundo caso de amor como fora o caso de Sarajevo -, resolveu que jantaria no melhor restaurante local. Foi assim que chegou ao Kibe. Sem reservas, fez a expressão de gordo esfomeado que já treinara para inspirar a condescendência alheia. Ademais, viera de tão longe. Deram-lhe uma mesa com linda vista e ele se esbaldou na cozinha sincrética. Em edições revisitadas, tinha diante de si o império Austro-Húngaro, ali representado por um Röstli. E também o Oriente-Médio, materializado sob forma de mini-quibes no iogurte. Numa concessão que ele quis crer caber ao ramo judaico da cidade, lhe atribuiu os kreplech deliciosos. Sarajevo cintilava na garoa. Na saída, um ladeirão enevoado lhe lembrou a cidade onde nascera. Dali voltou para o hotel pensando que dentro de mais 24 horas já estaria longe, voando sobre algum ponto remoto do imenso oceano.

 

Quanto a Sarajevo, conseguira ocupar um lugar cativo na alma errante e volúvel de Rino. Ao despertar na manhã seguinte, o sol resplandecia e lhe pareceu que uns brotos forçavam o desabrochar nos canteiros que juncavam a estrada que levava ao aeroporto. No alto, outras tantas casas dependuradas resistiam aos deslizamentos e humores da topografia. Voltaria lá um dia? Gostaria. Se isso acontecer, será como reencontrar uma velha amiga. Longe de ter explorado as entranhas da cidade mítica – sequer fora visitar os túneis de evacuação que garantiram sobrevida a tantos durante o Cerco -, Rino estabelecera uma cumplicidade à sua maneira. Passara muitas horas sentado à beira do rio; ouvira o chapinhar das águas sobre um leito raso de pedras, observara aquela gente tão diversa, cada qual enclausurada em seu mundo. E agora, quando soava a hora derradeira, flagrava na retina da capital que a primavera se imporia em dias, o que decretava fim de inverno na Bósnia-Herzegovina.