Clemente Rosas

Francisco Julião.

* Para Joaquim Inácio Brito, parceiro de longas conversas “de omni re scibili et quibusdam aliis”, que me sugeriu escrever estes textos.

I – Julião, Asturias, San Tiago Dantas

Conheci Francisco Julião em pessoa quando, em 1961, eleito Vice-Presidente de Intercâmbio Internacional da União Nacional dos Estudantes – UNE, e morando no Rio, recebi um convite para almoço na Embaixada da Iugoslávia com uma delegação de dirigentes sindicais daquele país.  Eles queriam conhecer melhor as forças políticas brasileiras mais notórias para eles: o movimento camponês e o movimento estudantil.

O carro da embaixada, que me apanhou, passou em seu hotel, e subi ao apartamento para chamá-lo.  Bem humorado, não se fez esperar.  Um velho funcionário, já veterano da representação do seu país no Brasil, e falando bem português, foi o nosso intérprete.

Nossas falas foram óbvias. O ambiente, descontraído e amistoso.  E aproveitei o encontro para pedir ao criador e líder das Ligas Camponesas uma mensagem de saudação ao “Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes pela Paz e Amizade entre os Povos”, ou simplesmente “Festival da Juventude”, que seria realizado no ano seguinte. Tratava-se do VIII Festival, e o segundo promovido em país não socialista: a Finlândia.  Os grandes promotores eram os países socialistas, mas a festa era aberta a todos os estudantes e jovens do mundo, e até mesmo aos não jovens.  A UIE – União Internacional dos Estudantes, com sede em Praga, tinha participação efetiva no encontro, e assim também a nossa UNE. (Para lá levamos um conjunto de samba, o casal de cantores Jorge Goulart e Nora Ney, o mímico Antônio Bandeira, discípulo do famoso Marcel Marceau, e até uma bailarina do Municipal do Rio.)

O texto de Julião, que recebi depois em manuscrito, foi a mais bela mensagem, entre as tantas enviadas por líderes políticos e personalidades ao redor do planeta, inclusive o nosso então presidente João Goulart.  Um verdadeiro hino de amor e esperança, dirigido à juventude mundial que se congraçava em nome da paz e da amizade. “Mir” e “Drujba” eram as palavras na língua russa para definir os propósitos do Festival. Sempre lamentei não ter guardado cópia daquele texto.

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No ano seguinte, conheci Miguel Angel Asturias em Montevideo, para onde fora levar, em nome da UNE, uma carta de apoio ao ministro San Tiago Dantas, pela posição do Brasil, na conferência da OEA em Punta del Este, de oposição à proposta americana de expulsar Cuba da organização.  Logo ao chegar, em contato com a Federação dos Estudantes do Uruguai, soube da realização, em paralelo, da “Conferência de Montevideo”, iniciativa das esquerdas do país em réplica à reunião dos chefes de Estado americanos no requintado balneário.  Entre as personalidades convidadas esteva ele, o famoso escritor guatemalteco.

Era uma figura imponente: grande corpo, moreno pálido, feições ameríndias (talvez descendesse dos maias, nativos de sua terra), comunicativo e simpático.  Dele havia lido “O Senhor Presidente”, romance de crítica a um dos muitos ditadores do seu país, que lhe custara vários anos de exílio.  Acompanhei-o, com numerosos participantes, em uma visita de solidariedade à delegação cubana, chefiada pelo presidente Osvaldo Dorticós, e a uma palestra, onde tive a honra de fazer uma fala preliminar.

Nessa breve intervenção, fiz uma referência positiva a uma característica das manifestações públicas de que participávamos naquele país, que me surpreendera bastante: a presença significativa de mulheres, algumas até com suas crianças.  Ele recordou, comovidamente, os tristes momentos da intervenção americana de 1954 na Guatemala, que depôs o governo nacionalista de Jacobo Arbens, tendo como instrumento o golpista Castillo Armas. E expressou bem a dor de uma resistência impossível, naquele contexto.

Ao final, tive ainda a gratificação de receber dele uma observação elogiosa sobre a minha referência à participação feminina nos atos políticos:

El comentario sobre la presencia de las mujeres… muy interessante!

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Minha visita ao chanceler Francisco Clementino San Tiago Dantas, hospedado em um dos sofisticados hotéis de Punta del Este, brancos sobre colinas verdes, foi das mais amenas.  Garoto de 21 anos, fui recebido com a atenção que se dá a uma autoridade diplomática. Em tom paternal, agradeceu o apoio dos estudantes do seu país, e me tranquilizou: a possibilidade da expulsão de Cuba estava descartada.

No dia seguinte, assisti a uma entrevista coletiva de imprensa, em que ele fundamentou, com uma fluidez verbal e uma precisão impressionantes, a posição brasileira: a excomunhão de Cuba seria marginalizá-la e levá-la a uma radicalização ainda maior de sua postura “revolucionária”.  Nenhuma palavra a mais ou a menos, nenhum tropeço ou hesitação.  À sua direita na mesa, um dos jornalistas brasileiros mais reacionários: um paraibano emigrado, de origem obscura, cachimbo pedante à boca e pseudônimo exótico – Teophilo de Andrade – de crista baixa e bico calado, vencido pelo brilho do expositor.  Jamais vi desempenho igual.

Semanas depois, já no Rio, com os colegas da diretoria da UNE, estive com ele de novo, em seu apartamento inundado de políticos. Nas apresentações, fui distinguido com o registro:

– Este eu já conheço.  Foi companheiro de Punta del Este!

Foi o bastante para a observação espirituosa, entre nós, do companheiro Marco Aurélio Garcia, gozador emérito:

– Vejam!  O chanceler do Brasil chama-se Clementino, o da UNE, Clemente!  É prestígio!

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Julião, idealista romântico, Astúrias, belo exemplo de intelectual engajado, San Tiago Dantas, inteligência fulgurante a serviço da boa política.  Como esquecê-los?  Como não ter aprendido com eles?