Fernando Dourado

Fernando Dourado aos 16 anos, em peça teatral na Aliança Francesa.

 

1. Nos anos 1970, o grupo de teatro da Aliança Francesa do Recife começou a se formar ainda no endereço da rua Barão de São Borja, no bairro da Boa Vista. O melhor centro para aprendizado de francês do Nordeste, e seguramente um dos melhores do Brasil, estava lotado num casarão de esquina com a rua José de Alencar. Lá funciona hoje um hotel para caixeiros-viajantes que operam no varejo daquela parte da cidade, e causa espécie ao visitante ressurrecto daqueles tempos ver uma cama de casal, um frigobar e um ventilador onde antes funcionava a biblioteca em que Sartre, Camus e Rimbaud imperavam soberanos, e cujas obras eram cobiçadas por estudantes que chegavam horas antes de a aula começar para ali se imantar da atmosfera europeia que então se respirava. Eu fui um deles.

2. Quem também era visto por ali já no começo da tarde para revisar seus apontamentos era meu professor favorito, Monsieur Jean-Paul Bouton. Francês de Belfort, quase Alemanha, dotado do maior nariz que eu vira até então, não era homem muito efusivo fora da sala de aula, pelo menos quando ainda não nos conhecíamos bem. Morador de um apartamento bem ao lado da Aliança, era casado com uma simpática mulher da Martinica e tinha um filho pequeno chamado Bruno. Dono de didática impecável, foi figura central na montagem e animação do grupo de teatro, a que dedicava generosamente as tardes de sábado para ensaios. Ao cabo do primeiro ano, já nos sentíamos tão próximos que fui com dois colegas levá-lo ao aeroporto às vésperas do Natal, para as férias anuais que tirava na França.

3. Na verdade, quando cheguei à Aliança Francesa, instado pela professora Vera Suassuna, do Colégio de Aplicação, não era outra a intenção senão a de acelerar o aprendizado da matéria que era de longe aquela em que eu tinha pior desempenho. Relegado a um certo ridículo numa escola que muitos chamam, exageradamente, de o berço do bullyingno Brasil, pensava em ter aulas de conversação, já que o resto se estudava na escola. Mas estando num meio onde todos tinham por objetivo aprender a língua, o que não era o caso do colégio, logo vi que tinha muito a ganhar se me inscrevesse no programa regular avançado. Não tardou para que as aulas de francês passassem a ser puro deleite, e para que eu saísse do limbo que me torturava. De fonte de suplício, o francês passava a ser um nutriente da autoestima.

4. Quando cheguei à Aliança Francesa, por volta de 1974, creio eu, o corpo docente era formado por professores brasileiros de excelente nível, embora eu nunca tenha tido aula com eles, e de um colegiado de cinco franceses. Além do aludido Bouton, havia o doce Leloup, então casado com uma olindense de grande beleza. Tínhamos ainda uma francesa de cabelos curtos e coxas vigorosas chamada Mademoiselle Canivet. E um marselhês que falava como personagem de Marcel Pagnol que se chamava Forestier, este de carisma zero, e que parecia se recusar a viver oRecife, embora vivesse noRecife. Por fim, para compor o corpo oficial, digamos assim, havia Monsieur Henri Delcasso, o diretor, um sujeito neurastênico, muito embora até divertido, quando longe das atenções gerais.

5. Do grupo acima, só contribuíam para a animação da trupe teatral Bouton e Leloup. Por deveres institucionais, Delcasso podia vez por outra dar as caras e perguntar sobre a evolução dos trabalhos, nos encontros casuais na lanchonete de D. Esmeralda e seu Ramiro. Mas tudo leva a crer que sua curiosidade se cingia a que não déssemos grande vexame por ocasião da apresentação de fim de ano. Era legítimo que tivesse seus rapapés com o cônsul Gaston Le-Paudert e esposa, e com o presidente da instituição, um advogado baixinho chamado João Bezerra de Alencar cuja esposa, D. Carmen, sempre comparecia nas ocasiões especiais. Outros franceses, contudo, integravam o pequeno universo que tanto aconchegava e, progressivamente, me enchia de entusiasmo.

6. Falo aqui, na verdade, de outras francesas. A começar por Pascale Malinowski, que vinha de uma rica trajetória de vida. Filha de um professor secundarista, vivera na Turquia e em Honduras. Lá conheceu um recifense com quem casou. Morando em Pernambuco, aproximou-se da Aliança onde se habilitou a dar aulas e, é claro, a divertir-se conosco. Transformou-se numa espécie de preparadora de elenco. A presença ostensiva do marido, um camarada com nome de pirâmide e nativo de Macaparana, refreava os avanços que uns ou outros podiam pensar em fazer. A destacar, outra dupla de gaulesas alegres. Uma era casada com um executivo francês de telecomunicações e se chamava Chantal. A outra, alta e divertida, era Annie, e ambas viviam o Recife a pleno.

7. Enquanto faço esse exercício de recapitulação, premido por uma necessidade de buscar escoras na memória e deixar um registro de uma temporada marcante, nunca esqueço que vivíamos anos de repressão política e ideológica. A presença ocasional de alguém alheio a nosso meio em ensaios, ou mesmo nas apresentações, suscitava justificada reserva. Assim sendo, quem fosse mero curioso, que se apresentasse logo como tal para diluir as tensões. Não que estivéssemos desfraldando quaisquer bandeiras que pudessem ser associadas à agenda brasileira. Mas sabíamos que um núcleo que era, bem ou mal, artístico, e que existia em torno de uma língua estrangeira, tinha tudo para levantar suspeitas e atrair sacripantas de toda sorte, ciosos de mostrar serviço e de apontar conspirações internacionais.

8. Antes de continuar, impõe-se pois dizer que essa preocupação ganhou mais tangibilidade quando nos mudamos do coração da Boa Vista para a área de Santo Amaro, mais precisamente para um casarão que ficava a cem metros da porta do IV Exército, no parque Treze de Maio. Se por um lado, isso facilitou bastante minha vida já que bastava atravessar o parque na diagonal para chegar à minha casa, não há como negar que o casarão da José de Alencar nunca me saiu do coração. Para mim, era uma região mais propícia ao estudo e até à farra. Por ali morara meu avô e estávamos a dois passos dos endereços boêmios da avenida Conde da Boa Vista, que logo passaria a frequentar, sendo um de meus favoritos a loja de batidas Fast Back, atrás do bar Mustang;

9. A primeira peça que encenamos não foi bem uma peça. E sim um sketchem dois quadros que aconteceu no Iate Clube, então ao pé da ponte da Torre, endereço que nos fora franqueado certamente pelos bons ofícios de nosso presidente, posto que era Comodoro da instituição. Eu não estava à vontade. Tímido, com graus variados de gagueira, de meião e peruca, fiz Luís XIV. Um vestibulando de medicina com quem me desentenderia mais adiante, mas de quem ainda gostava nessa época, fez Racine. Foi um bom batismo de fogo. As colegas da Aliança, mulheres acolhedoras e alguns anos mais velhas, tinham para comigo um olhar maternal, mesclado de uma certa sensualidade cúmplice, se é que me explico. Talvez por adivinhar no adolescente que eu ainda era as transformações a caminho.

10. Meu grande temor, bem entendido, era que meus pais comparecessem à festa. Minha mãe poderia achar aquilo estranho e encontraria defeitos na produção, detectando um furo no meião, falta ou excesso de maquiagem, enfim, teria que apontar uma não-conformidade como é de praxe na sua família. Aceitar as coisas como tal não era prerrogativa para ser usada com os filhos, senão com os netos, bem mais adiante. Quanto a papai, tudo era possível. Desde esposar a posição de mamãe quanto enxergar ali manifestações camufladas (ou explícitas) de veadagem. Quando me perguntava o propósito dos ensaios que me tomavam as tardes do sábado, eu dizia que a Aliança era um celeiro de mulheres bonitas, e isso o fazia sorrir. “Está precisando de alguma coisa?”

11. Um benefício palpável da experiência teatral, é que os textos para o palco passaram a me interessar mais do que qualquer tipo de literatura. Aos 16 anos, era uma provação ter que aguentar as aulas de matemática – em que contei com o pior trio de professores que o Criador botou sobre a Terra –  quando podia estar lendo Georges Feydeau, Albert Camus, Jules Romains, Jean Anouilh, Courteline e o já mencionado Pagnol – cuja trilogia “Fanny”, “Marius” e “César” eu conhecia de cor. Como podia a felicidade suprema estar a duas portas do inferno, sabendo que me esperavam no colégio os três arautos da álgebra, da geometria descritiva e da trigonometria? Como eles eram negros, cheguei na época a pensar que podia haver uma correlação entre as origens pobres e a matemática, como forma de suprir o português vacilante dos menos favorecidos.

12. Um belo dia, e todos eram razoavelmente belos em meados dos anos 1970 no Recife, soubemos que encenaríamos Antígona, de Jean Anouilh. Ou “Antigone” já que só nos apresentávamos em francês. Coube a Cassiano o papel de Créon. Tratava-se de um estudante de direito da Paraíba que morava no edifício Suape. Bom aluno também em inglês, na Associação Brasil-Estados Unidos, localizada ali perto, era um rapaz que vivia para estudar. Contido, mas bem-humorado, era para mim e para outro colega uma espécie de mentor. Sua atuação na peça me pareceu impecável. Tinha falas longas e pesadas. E soube valorizar cada frase com bom domínio de cena. Um dia foi para a Paraíba e nunca mais voltou. Doeu-me ouvir da família que o esquecesse. Será que teve um surto que o rachou em dois?

13. Quem fez uma convincente Antígona foi uma estudante de medicina chamada Hildegard Buhr. Mais baixa do que alta, ela tinha a expressão carregada de cansaço de quem já começava a dar os célebres plantões. Sob os cabelos lisos, uma boca em flor articulava bem as palavras e, de fato, dava para discernir alguma coisa de eminentemente trágico naquela moça que subiu à cena toda de preto. Foi chocante, de qualquer sorte, saber que faleceu tão cedo. Quanto a mim, fiz o Primeiro Guarda, o homem vulgar que cuspia no chão, cheirava rapé e fazia considerações grosseiras sobre a vida da caserna a Antígona, pouco antes de sua execução. Não sendo um texto muito longo, tratei de valorizá-lo ao máximo. Com alguns tiques que incorporei ao personagem, agradei de cheio.

14. A peça do ano seguinte, não me entusiasmou a princípio. Acho que eu sonhava com Molière, de quem já lera quase tudo. Quando fizemos a primeira leitura de “Le Jeu de la Miséricordieuse”, uma versão para o francês de o “Auto da Compadecida”, mudei da ideia. Havia sim algum acerto na decisão. Isso porque mesmo que nossas plateias de fim de ano não falassem francês, a familiaridade que tinham com a peça bastaria para que apreciassem a montagem. Desta feita, com Cassiano fora do cenário, me coube o papel de João Grilo. A João Humberto Martorelli, coube o de Chicó. Roberto Abdala foi o padeiro e a esposa dele, Isabel Távora, simplesmente arrasou em cena. Àquela altura já era minha namorada e, no fundo, eu me orgulhava da escolha que fizera.

15. Digno de nota, para além da presença no elenco de dois companheiros de classe do Aplicação que eram Arthur Gomes de Morais e Antonio Carlos de Sales Menezes, foi a incorporação de um jovem estudante de medicina ao elenco. Paulista, bem-humorado, isolado da família ao que tudo levava a crer, logo foi adotado por todos nós. Disciplinado, nunca faltava aos ensaios e parecia exalar um algo mais nos bons modos e na educação. Foi, portanto, com certo estupor que, no ano letivo seguinte, tendo voltado de uma viagem a São Paulo, ele apareceu com um estranho corte de cabelo e uma espécie de jaqueta com as insígnias da TFP, uma organização conservadora ligada a uma vertente sinistra da igreja católica. Será que nos entregaria ao SNI? Senti-me apunhalado e o isolamos.

16. Contamos com Ariano Suassuna na primeira fila da apresentação daquele ano. A primeira encenação foi no auditório da Aliança Francesa. Na verdade, era uma sala para no máximo cem pessoas sentadas e outras tantas espalhadas pela escadaria e corredores. Lembro que lá tivemos uma segunda e creio que uma terceira exibição no auditório do Colégio São José. Não gostei da reação de Ariano. Longe de ser acolhedor e de se dar por satisfeito por todo um ano de empenho, ele me pareceu blasé e burocrático. Cumprimentou-nos um a um, mas não se deteve em ninguém, salvo em Isabel. Tenho certeza de que trinta anos mais tarde, poderia ter sido mais magnânimo até no desagrado, se tivesse sido o caso. Mas naquela época, ainda devia constrangê-lo não falar uma sílaba de francês, antes de transformar uma limitação em imagem de marca.

17. Não tenho mais qualquer lembrança de como o grupo de teatro continuou, se é que continuou. Aos 17 anos, eu já morava na Alemanha, ficaria dezoito meses sem voltar ao Brasil e só reatei com a Aliança Francesa para terminar o Nancy III, o galardão máximo a que se poderia almejar no idioma em qualquer parte do mundo não-francofônico, pelo que se dizia.  Foi uma etapa que ficou para trás e nunca fui sequer buscar o vistoso diploma que era confeccionado na Universidade de Nancy. Os professores vinham de lá para aplicar o exame oral e as provas escritas eram um verdadeiro “tour de force”. Só mesmo o amor que me unia à língua, à França e aos professores que me haviam apontado esse caminho, permitiram-me chegar tão longe. Soa clichê de miss, eu sei, mas é sincero.

18. “Mas afinal, para que servia tanto ensaio, se as peças nunca foram encenadas?”, perguntou papai um dia. Desconversei. “Era tudo pretexto para namorar, papai. Uma vez, lá no camarim improvisado, uma das francesas nos apressava para trocar de roupa. Como tinha gente que se escondia atrás do biombo, ela decretou que artista não tinha sexo e que todos ficássemos nus. Era uma beleza.” Pronto, ali eu lhe dera um ponto de apoio irrefutável para achar que a experiência valera. De mais, eu namorava com Isabel, egressa daquelas tardes de sábado. E ele era simplesmente fascinado por Isabel, a quintessência da mulher sexy dos anos 1970. Mas eu evitava falar de teatro com papai. Rompera relações a respeito quando ele ridicularizou o argumento de “Rinoceronte”, de Ionesco.

19. Na verdade, faço este longo caminho de recapitulação em tributo a uma emoção. Todos nós que vivemos uma vida internacional intensa, que achamos em dado momento que as experiências de uns não se amalgamam bem às de outros, frequentemente temos as evidências palpáveis de que o bom da vida é devermos muito uns aos outros, e atribuirmos os créditos a quem de direito. Naqueles anos, eu vinha de um lar conflitado, era ensimesmado pela timidez embora a disfarçasse bem. Foi o teatro pois que me habilitaria, mais adiante, a desbravar muitos mundos com desenvoltura. Assim, foi ao rever o professor Bouton, em tão boa forma quanto há 45 anos, por ocasião de um lançamento meu no Recife, que se abriram as comportas dessas reminiscências que hoje compartilho.

20. No obscurantismo do regime discricionário pós-1964, que se arrastou durante os anos 1970, bem à época em que fui um adolescente na Aliança Francesa, muitas cumplicidades se selaram até por termos os adversários políticos bem identificados. Lembro de outro jovem que integrava as falanges da TFP que chegava de bicicleta todo dia e cujo pai era tido como uma espécie de psiquiatra oficial do regime. Era atroz. Nosso confessionário de inquietações era pois o porto seguro dos amigos franceses. Nesse contexto, sempre gostei de Pascale Malinowski que integrou a trupe naqueles anos de chumbo e que morou até pouco tempo em Estrasburgo, na Alsácia, cidade que foi durante 3 anos minha base na Europa, onde ficava em sua casa. Daí que o intangível daqueles anos é simplesmente impagável. No fundo, toda juventude é escandalosamente bela.