Helga Hoffmann

O Brasil está apalermado pela polarização. Está afetando mesmo alguns intelectuais, ao menos em polêmicas do mundo digital. Vejamos só os importantes temas que já causaram grandes debates no Facebook este ano: a sandália de dedo com que o Presidente da República se apresentou em reunião de trabalho, suas camisetas de clubes de futebol, se ele foi vaiado ou aplaudido em estádios, o papel do hambúrguer no currículo de um embaixador, se vale pedido de desculpa determinado pela justiça, a predileção do Presidente por “caca” como xingamento para ambientalistas e opositores (para ficar no equivalente francês que soa menos rude, usado pelo semanário de picuinhas Le Point, o primeiro a apontar esse gosto do Presidente do Brasil, que depois só fez piorar). Devo ter esquecido mais alguma provocação.

Foram cortina de fumaça que obscureceu em parte a discussão do que não foram despautérios, e sim, manifestações abjetas de um Presidente que defendeu nepotismo, desprezou dados sobre desmatamento e reservas indígenas, e insiste em nível de brutalidade caricato ao defender a tortura sem pejo e declarar herói nacional um torturador do tempo da ditadura de 1964. Falas tão retrógradas que podem transformar o Brasil em pária na opinião pública do mundo civilizado! Pois objeto de chacota já é, dada a mais completa irresponsabilidade com que o Presidente do Brasil opina em campanha eleitoral de outros países.

Mais recentemente fervilharam comentários sobre se o General Hamilton Mourão ofendeu Angela Merkel e as mulheres do mundo inteiro com uma piada de mau gosto (de que ela tremeu ao enfrentar o olhar de Trump). Como se esta rocha do centro político no mundo se importasse com comentário desse tipo, ainda mais vindo do atual vice-presidente do Brasil! Pois é, às vezes a gente conta a piada errada. E é submetido ao espancamento verbal, Mourão chamado de canalha para baixo, ou para cima, sei lá da hierarquia das ofensas. Como se assim o assunto deixasse de ser irrelevante na diplomacia internacional! Alguém faz a piada errada, e alguém por perto, à espreita, se aproveita. Como aprendeu William Waack, que reconheceu a queda e deu a volta por cima.

De um ângulo diferente, é até bom que essa oposição, pouco mais que um exército de Brancaleone, ataque o Vice-Presidente, para acalmar o Presidente paranoico de mania de perseguição e apavorado com competidores. Não estão vendo como o Presidente está fritando Sérgio Moro? Enquanto faz brincadeira com a lealdade de seu Ministro da Justiça, junta-se ao Presidente do STF Ministro Dias Toffoli no objetivo de enfraquecer o COAF. Quem não viu no WhatsApp um videozinho em que Bolsonaro dá autógrafo em camiseta de clube, chama Moro que também coloca seu autógrafo junto ao do Presidente, que checa a assinatura de Moro e exclama “Lula livre?!” para gargalhadas dos presentes e um sorriso encabulado de Sérgio Moro, abraçado por Bolsonaro. Isso aí não é piada apenas, é insinuação de uma exigência de lealdade incondicional, visível já em outros quiproquós de nomeações e demissões. Que situação, a de Sérgio Moro! Ele não percebeu que o Presidente do STF Ministro Dias Toffoli suspendeu o uso de informações do COAF a pedido dos advogados de Flavio Bolsonaro? Não viu que Janaina Paschoal até pediu impeachment de Toffoli por esse motivo?

O último dos debates feicebuquinos, então, é surreal, me faz entender, de novo, porque Bolsonaro, para além do antipetismo e da repulsa à corrupção, foi eleito também por um certo cansaço com exageros do politicamente correto. A aparência de honestidade está arranhada, tem manchas difíceis de limpar enquanto o STF mantém suspensa a decisão que atinge indiretamente a legalidade das ações do COAF. A batalha contra a corrupção está em perigo, não só por causa da Vaza-Jato lutando contra a Lava Jato, mas porque a inteligência financeira está suspensa. Mas o Presidente continua surfando nessa onda da irritação contra os exageros do politicamente correto.

Pois a vítima mais recente da indignação de “jornalistas” em suas novas torres de Facebook a discutir os destinos da pátria foi Sergio Moro. Ora, o Sergio Moro! De advogado modesto e reservado em Maringá, até meio rústico, virou, com a Lava Jato, celebridade mundial, passou de aluno a palestrante em Harvard, o herói da “mani pulite” do Brasil. Pelo visto, assim como seu chefe Bolsonaro, não sabe bem lidar com alguma queda na sua popularidade.

Parece que, em evento oficial para comemorar a Lei Maria da Penha, tentou lá uma teoria psicológica ou psicanalítica sobre violência masculina. Sei lá quem é o assessor dele para temas de psicologia ou se ele andou lendo os artigos mui competentes que vários psicanalistas têm escrito sobre a personalidade e os tiques e esgares de Jair Bolsonaro. A manchete de jornal, que aparentemente foi só o que a militância do politicamente correto leu, diz apenas algo como “Moro diz que homens agridem mulheres porque se sentem intimidados”.  Na matéria aparece ainda que ele acrescenta que o mundo mudou, com crescente papel da mulher na sociedade, que existem homens que agora se sentem ameaçados porque estão aprendendo que as mulheres são iguais, que já sabem que não mandam nem são superiores às mulheres, daí viria reação irracional às vezes violenta. E sei lá mais o que. Umas frases meio atrapalhadas e sem maior importância, de quem deve ter ouvido falar em companhia civilizada que há mesmo muitos homens um tanto confusos sobre como lidar com as mulheres no mundo que de repente parece não saber distinguir entre assédio e cantada.

O essencial da reunião é que o Ministro estava lá apoiando a Lei Maria da Penha. Alguém das batalhadoras contra o machismo prestou atenção na Lei Maria da Penha? O apoio dele à Lei Maria da Penha ficou fora das preocupações das neofeministas. Lei Maria da Penha não foi feita para mulher rica, que contrata advogado e consegue extrair o máximo do ex, mesmo que até ganhe mais que o dito cujo. Lei Maria da Penha foi feita para proteger mulher pobre da violência doméstica, e em parte não consegue porque a mulher evita denunciar o companheiro, pois se este é preso e deixa de trabalhar os filhos vão ficar passando mais necessidade ainda. Isso já foi documentado. Não sei se a pastora e Ministra Damares vai levar isso em conta para sua ideia de melhorar o registro das ocorrências.

O assunto é outro, mas lembrei de Pedro Malan em 1989, comentando as ideias de política econômica de John Williamson. Uma vez observou que chamavam tanta atenção porque haviam sido denominadas de “Consenso de Washington”, e que ninguém teria lhes dado importância se ele as tivesse denominado de Consenso de Ouagadougou. Tenho a impressão de que se fosse agora não iriam continuar a discussão das teses do tal Consenso (verdade que datadas) e iriam lançar uma chuva de impropérios contra Malan por “ofender a África e os africanos”. O engraçado é que mais tarde, em 2004, existiu de fato um “Consenso de Ouagadougou”, aprovado em cúpula da OIT (Organização Internacional do Trabalho) na África. E de fato não teve grande repercussão, só reparou o pessoal que acompanha organizações internacionais por dever de ofício. Por certo a repercussão foi muito menor que o Consenso de Washington, por mais que tenha se esforçado o chileno Juan Somavia quando presidente da OIT.

Pois é, frases sem importância, não tivesse sido Moro transformado em herói sem mácula. E, sobretudo, em peça importante do governo Bolsonaro. Aí, não importa o rótulo que eu pespegue – se lulopetismo, uso demagógico do feminismo ou de batalha retórica contra o machismo, ou apenas falta de um pouco de bom-senso -, fato é que qualquer pretexto serve para realimentar a polarização. É assim que se ajuda aos bolsonaristas em 2020. E não falta gente jogando isca na direção da margem oposta.

Enquanto isso o Presidente ignora a informação oficial do COAF de que identificação de movimentações financeiras suspeitas se faz eletronicamente, que os conselheiros não escolhem pessoalmente quem investigar, e vem com a conversa de passar o COAF para o Banco Central “para evitar pressões políticas”. Quanta hipocrisia! Pois se há pressão política sobre o COAF, ela vem de Flavio Bolsonaro, que conseguiu do STF a suspensão da inteligência financeira no Brasil.

Com a economia “entre a recessão e o quase nada”, quem sabe o Presidente comece a enxergar que precisa cuidar menos dos filhos e mais do governo, preocupar-se com temas como estabilidade das regras orçamentárias e instituições, a insegurança jurídica que só piora, confiança e ambiente de negócios, regras claras para investidores, funcionamento independente de agências reguladoras, avanço nas negociações comerciais e produtividade, disparidades pessoais e regionais de renda, o desemprego que persiste. Assuntos mais complicados que cadeirinhas e radares. O Ministro Paulo Guedes precisa explicar ao Presidente que suas falas começam a atrapalhar a prometida modernização da economia, que o tal “Posto Ipiranga” por si só não consegue avançar contra a ventania que nem ao menos vem apenas da outra margem.