“As margens da ficção”, de Jacques Rancière, recém-lançado no Brasil, com tradução de Fernando Scheibe, é um robusto conjunto de doze ensaios sobre ficção moderna publicado na França em 2017. Até aí nada de especial para os leitores brasileiros do pensador francês. O detalhe, que em absoluto é um detalhe no sentido exato dessa palavra, é que Rancière nos brinda com uma chave de ouro: o ensaio final trata da ficção de ninguém menos que o nosso Guimarães Rosa.

O fio condutor do ensaísta francês é a mudança de paradigma do estatuto ficcional que, por séculos, vigorou no Ocidente. Tal estatuto, embasado na “Poética” de Aristóteles, sempre defendeu para a ficção uma racionalidade, segundo a qual começo, meio e fim deveriam estar presentes e encadeados de uma forma lógica; além disso preconizava que os personagens transitassem da fortuna ao infortúnio ou vice-versa. É essa previsibilidade que foi atacada na modernidade, quando, nas palavras de Rancière, “a ficção se vê confrontada com sua possível anulação ou referida a essa ou àquela figura de alteridade”, passando a acolher “os acontecimentos insignificantes da existência cotidiana ou a brutalidade de um real que não se deixa incluir […] Trata-se ainda das fronteiras incertas entre os acontecimentos que se relatam e aqueles que se inventam”. Doravante, com efeito, surgirão autores que, por assim dizer, forçarão os limites, as “margens”, comprazendo-se em criar uma engenhosa porosidade e uma nova espessura temporal.

Dentre esses escritores que abalaram o tecido convencional, aristotélico e tradicional da verossimilhança literária, que romperam cadeias e estabeleceram inovadoras relações com a realidade, Rancière aborda e nos lembra de Marcel Proust, Joseph Conrad, Balzac, Flaubert, W.G. Sebald, Virginia Woolf e o nosso Guimarães Rosa, com quem encerra, como já dissemos, seu conjunto de ensaios.

Salvo engano, parece-nos bastante intencional que o texto sobre Rosa, “O desmedido momento”, tenha ficado em último lugar, a modo de uma chave ou de uma margem que alude à própria tese defendida pelo ensaísta. Será talvez o mais iluminado dos ensaios. E não nos passa despercebida a sintonia da palavra “margens” do título geral rancieriano com as “margens” de Guimarães Rosa presentes em dois famosos contos: “As margens da alegria” e “A terceira margem do rio”, ambos do livro “Primeiras estórias”, sobre o qual se debruça o autor francês.

A propósito, quando eventualmente me perguntam por qual livro começar a ler o gênio mineiro, sempre respondo que se comece por “Primeiras estórias”, tão obra-prima e tão inquietante quanto a “magnum opus” de todos conhecida: o “Grande sertão: veredas”. Pois bem, é sobre esse conjunto de contos estranhos, “mágicos” e como que tecidos por uma mesma básica urdidura que se volta a análise de Rancière.

O autor francês logo vai ao ponto, assinalando que tais “estórias” (como Rosa fazia questão de registrar) “São beiras de histórias, quase-histórias, que desenham as beiras de toda história, os momentos em que a vida se separa de si mesma ao se contar, transformando-se em ‘vida verdadeira’: uma vida que, justamente, não tem margens e que contravém assim ao princípio aristotélico de toda ficção — o de ter um começo, um meio e um fim e de se dirigir do primeiro ao último através de um encadeamento concertado de causas e efeitos”. Trata-se de um jogo de “[…] fábulas do nada e do quase nada, do alguém e do ninguém, do acontecimento e do não acontecimento, para mostrar como a vida se separa imperceptível e radicalmente de si mesma”, “transpondo o limite que separa o que acontece do que há”.

Rancière analisa, como inequívoco e harmonioso conjunto, os contos “Famigerado”, “Os irmãos Dagobé”, “Nenhum, nenhuma”, “A terceira margem do rio”, “Nada e a nossa condição”, “Sequência”, “Substância”, “Soroco, sua mãe, sua filha”, todos “contos críticos” (como os chamava Rosa), nos quais, para dizermos como o ensaísta francês, a ficção fala de si mesma. Mostra-nos inter-relações temáticas e formais do subtexto, chamando-nos a atenção que “o lugar paradoxal da ficção” é “o lugar sem história onde as histórias podem desabrochar”. Num breve contraponto entre Rosa e Proust, observa que o conto “’Nenhum, nenhuma’ resume, em algumas páginas, a moral que em ‘Em busca do tempo perdido’ se estende por sete volumes: tão só o esquecimento é a condição da lembrança, a ausência de amor é o lugar onde desabrocham as histórias de amor; e a vida verdadeira é a que só existe à margem da vida”.

Tendo como título o “Desmedido momento”, o ensaio de Rancière sobre a ficção rosiana termina por ser a melhor ilustração de que as “margens da ficção” nos apontam a ficção das margens. Na modernidade, a ficção já não é o que costumava ser, por isso se abriu ao insignificante, ao democrático, ao extratemporal, a tudo que abre portas e janelas e, dessa forma, como faz Guimarães Rosa, não busca apenas o irreal, mas o transreal, o “desmedido momento”.