Machado de Assis.

 

O título acima é justamente o título que Machado de Assis não deixou escrito, mas talvez nele tenha pensado. Precisaria ter ido tomar ao espanhol o adjetivo “insereno”, que curiosamente falta ao português, embora exista no latim. Mas também é provável que Machado nunca tenha pensado nesse título porque seu gosto foi mesmo o de deixar, já no título, a ironia que queria transmitir. Sim, estou me referindo ao conhecido conto “A sereníssima república”. República a que falta justamente serenidade num momento muito especial: na hora de votar (uma antecipação de nossos dias?). Muitas décadas mais tarde, Norberto Bobbio, em seu “Elogio da serenidade” escreveria, com toda a razão, que “A serenidade não é uma virtude política, antes é a mais impolítica das virtudes”.  

É da legendária Veneza que vem o título de Machado: era um dos epítetos da gloriosa cidade. O título vem de longe, mas o autor parece antecipar os problemas que logo estariam por perto quando, aos 50 anos, viu se instalar o regime republicano no País. Como se sabe, admirador de Pedro II e funcionário do governo, Machado encarou com ceticismo o início do novo regime. Há quem diga que o viu até com certa raiva, desapontado com rumos que pareciam levar o País a uma guerra civil, em especial de 1889 a 1894. 

Também o Cônego Vargas, narrador e protagonista do conto que vamos comentar, mal esconde seu desapontamento com a república que viu nascer em sua chácara. O cônego faz parte daqueles religiosos que não só amam a Deus, mas à ciência. O conto (e neste passo Machado inova ao mesclar os gêneros) é igualmente uma conferência e uma fábula. O conferencista é o próprio sacerdote. Todavia, ele mesmo faz uma ressalva, antecipando-se às inquietações de sua audiência: “Citando Darwin e Büchner, é claro que me restrinjo à homenagem cabida a dois sábios de primeira ordem, sem de nenhum modo absolver (e as minhas vestes o proclamam) as teorias gratuitas e errôneas do materialismo”.

O que o Cônego Vargas quer comunicar é algo de natureza fantástica e… científica. Descobriu que certa espécie de aranhas têm o dom da fala. Tais aranhas se multiplicaram em sua chácara, e ele as domina pelo conhecimento que tem da sua língua e pelo medo que nelas infunde. “A minha estatura, as vestes talares, o uso do mesmo idioma, fizeram-lhes crer que era eu o deus das aranhas, e desde então adoraram-me.” Pretendendo dar um governo à sua população de aranhas, o bom cônego diz que hesitou na escolha: “[…] muitos dos atuais pareciam-me bons, alguns excelentes, mas todos tinham contra si o existirem”. Após essa declaração tão humorística quanto pessimista, o cônego se decide pela república, uma república “à maneira de Veneza”, na qual, lembra ele, as práticas eleitorais lançavam mão do uso de um saco e de bolas. Explica o padre: “Metiam-se as bolas com os nomes dos candidatos no saco, e extraía-se anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas”. Mais uma vez, o cônego se antecipa às inquietações da plateia: “Este sistema fará rir aos doutores do sufrágio; a mim não. Ele exclui os desvarios da paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça”. Ademais, “Meus pupilos formam um povo recente, que não pode trepar de um salto ao cume das nações seculares”.

Enfim, não tardou que a regularidade das eleições fosse maculada por comprovadas denúncias de fraude, e as regras, por isso mesmo, fossem mudadas para tentar sanar os vícios da aracnídea sociedade. A essa altura, o conferencista tece um comentário tornado célebre: “Infelizmente, senhores, o comentário da lei é a eterna malícia”. Várias vezes, o saco dos sufrágios (a urna eleitoral) passa por mudanças graças às emendas à lei. Finalmente, não sendo possível a perfeição, após tantas avenças e desavenças, um dos cidadãos da nova república lembra às aranhas a história de Penélope, “[…] que fazia e desfazia a famosa teia, à espera do esposo Ulisses”. Às damas-aranhas encarregadas de fazer o saco eleitoral, ele exorta: “Vós sois a Penélope da nossa república, tendes a mesma castidade, paciência e talentos. Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a Sapiência”.

Eis, em dois sumaríssimos parágrafos, uma precária síntese da criação machadiana. Mas dá para notar que a urna eleitoral (o saco), ao sabor de sucessivas fraudes, termina por ser o signo por excelência que remete à corrupção da sociedade. No conto, como na atual realidade brasileira, a urna, fazendo um trocadilho, é um saco de pancadas: faz-se e desfaz-se, reduz-se e alonga-se, espelhando uma república que nada tem de serena, muito menos de sereníssima. Mas a urna também é signo da instabilidade institucional. As suas sucessivas metamorfoses desmoralizam as boas intenções do Cônego Vargas, uma vez que, como vimos, ele imaginava instalar um processo eleitoral isento de paixões e vícios. Todo o discurso pretensamente “científico” do sacerdote é ironicamente revertido pela própria humanidade de suas aranhas. Dessa forma, o texto (tecido) do conto também se destece, caindo do entusiasmo inicial (progressista, científico, imparcial, etc.) a um patamar carente de qualquer sabedoria. O texto, por assim dizer, rasga-se a si mesmo para expressar a ironia crítica de Machado. Por vias “oblíquas e dissimuladas”, o escritor, em mais de um momento do conto, nos acena que a jovem nação das aranhas não é outra senão o próprio Brasil. A sílaba “bras”, incrustada no nome de um candidato chamado “Nebraska” (vítima, coitado, de fraude) parece deixar visível a intenção lúdica de Machado… 

Bem, o conto que acabamos de comentar está em “Papéis avulsos”, de 1882, vizinho no tempo do romance “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de 1881, este mesmo “Brás” que os críticos John Gledson e Roberto Schwartz sagazmente perceberam como um signo do próprio Brasil. Enfim, nem sempre o Bruxo do Cosme Velho estava apenas mergulhado nas profundezas do coração humano. Sua poção mágica e genial também se embebia das fragilidades sociais de um Brasil que aspirava a ser, malgrado suas contradições, uma sereníssima república. Até hoje, nunca o foi. Mas alguma o terá sido? Norberto Bobbio, creio, concordaria comigo.