Gilberto Freyre.

 

Nunca esqueci o dia em que ainda jovem, na década de 1980, vi Gilberto Freyre cercado de alunos do Ensino Médio de uma escola pública. O cenário era o jardim do Museu do Homem do Nordeste. Aproximei-me para ouvir o que o mestre falava à juventude. Do que pude escutar, ficaram-me apenas estas palavras que o vento e o tempo não levaram da memória: “O que fiz, o que sou, devo a esta munheca aqui”. Ao fazer esse enunciado, levantou o punho no ar num quase inevitável gesto teatral. Ao apontar sua autonomia e seu sucesso, Freyre, numa aula de comunicação, talvez quisesse indicar àqueles alunos uma potência que eles poderiam buscar dentro deles próprios. Ao erguer o punho, trazia às suas palavras um signo de vitória e, nesse signo, como que nele engastado, um signo de luta e de confiança.

Jovem vocacionado ao universo das letras, como rememora, em “Tempo Morto e Outros Tempos”, Freyre desde cedo foi uma ilha cercada de elogios. Desde então como que preparado pelo destino para ser um grande escritor. Nessa ontogênese, destaco a sua exotopia, sem a qual talvez não tivesse sido o que foi. Seus anos de aprendizado no exterior modelaram uma espécie de nacionalismo plástico com que buscaria entender o Brasil. No plano da escritura, logo se dedicou a integrar-se à família de escritores que ele próprio apontou como rara: a dos que unem razão e sensibilidade, análise e paixão. A mesma família de um Euclides da Cunha, para ficarmos apenas no plano brasileiro. Freyre tinha uma consciência viva que se apurou com o tempo: a de saber da imortalidade da arte e da perecibilidade ou mudança das teorias científicas. “A arte é mais que a ciência”, ouvi-o certa vez dizer numa palestra sua.

Erudito, gentil e cheio de entusiasmo e de uma vaidade que todos bem conheciam, Freyre foi uma espécie de aranha feliz e criadora. Uma aranha a que não faltou a vitalidade dos que ousam. A vida cultural e política brasileira do século 20 no Brasil está enredada por uma teia sutil do que fez como homem de ação e de pensamento. Teia a fazer pontes entre ilhas e lacunas. Freyre, como se sabe, são muitas vozes: a do sociólogo, a do historiador social, a do crítico, a do poeta, a do publicista. Foi um polímata e um pioneiro e sentia-se bem na confluência dos saberes. E foi, à diferença de muitos escritores e intelectuais, um filantropo: sentia-se bem entre as pessoas na vida em sociedade.

Dentro de si mesmo, no seu ser mais profundo, num tempo de revoluções e de confrontos, vivia um otimista. Nesse otimista parece ressoar, “cum granum salis”, a doutrina americana do “Destino Manifesto”. O Brasil dava sinais, segundo ele, de uma nova civilização a vir. Felizes trópicos. Para ele nada de seca e dura realidade. Sua imaginação é intensa como a de um poeta, como tive ocasião de demonstrar no meu ensaio “O imaginário da terra e da água em ‘Nordeste’” (“Arrecifes – revista de cultura, número especial – Centenário de Gilberto Freyre”, Prefeitura da Cidade do Recife, 2000). Chegou a escrever, inspirando-se numa expressão de Carlyle, que no Brasil havia “um equilíbrio de antagonismos”, o que é no mínimo dubitável. Alguns livros e passagens de sua obra parecem trechos de um escritor de ficção, o que não tira, pelo contrário, o brilho de suas palavras. Penso, por exemplo, no esplêndido começo de “Ordem e Progresso”, a irmã caçula da trilogia célebre em que estão “Casa-grande & senzala” e “Sobrados & mocambos”…

Como o próprio Freyre afirmou, nele o escritor se sobrepunha ao cientista social e, por isso mesmo, eis o paradoxo, com maiores condições de penetrar no cerne da realidade. Sabia, como Freud o sabia com relação aos poetas, que há um mistério em jogo e que por meio da literatura se chega a um conhecimento do qual os próprios analistas (no duplo sentido!) apenas roçam a superfície.

Freyre, quem não sabe?, deixou uma das obras mais vastas das nossas letras. Tudo o interessava vivamente. Daí também ter sido motivo de chacota da parte dos ignorantes de plantão. Nenhuma glória é sem espinhos. Seus livros, seus artigos de jornal, suas entrevistas, suas intervenções na política cultural do país formam um maciço de análise e sensibilidade, de mil sugestões a serem desdobradas pelos pósteros. Como poucos, ele soube inspirar muitos outros, a exemplo de um José Lins do Rego, de um Rodrigo Melo Franco de Andrade, de um Manuel Bandeira, de um Mário Souto Maior, de um Clóvis Cavalcanti, de um Roberto Motta…

Vejo na memória o punho erguido do então octogenário, o braço como um mastro de orgulho. Ouço ainda a sua voz rouca e determinada. Vejo os olhos de admiração daqueles estudantes que o cercavam. Quem sabe se daquele grupo juvenil não nasceu um escritor, um estudioso do País, um amante das artes? Com aquele gesto e aquela frase, talvez ele tenha aberto uma porta para outros mundos.