16 de dezembro de 2019
Ouço a Sinfonia número seis de Beethoven, a Pastoral, a minha preferida. Principia, no Allegro ma non troppo de 10:27 minutos, com o despertar de sentimentos felizes dos pastores com as ovelhas, ao chegar ao campo. Poderia ser seu João conduzindo as cabras na Fazenda Bálsamo, de meu irmão, em Bezerros. No Andante molto mosso, eles seguem ao longo de um riachinho por mais 13:22 minutos. O Allegro vem a seguir, com toda a euforia de uma festividade, que dura apenas 5:12 minutos. Fosse nos campos de Minas Gerais ou São Paulo, uma folia de Reis, imortalizada na voz de Milton Nascimento. Festa que se aproxima, no seis de janeiro, para encerrar os festejos natalinos. Porém outro Allegro se alevanta nos 3:50 minutos que se seguem, dramático: a tempestade. E a sinfonia se encerra com um Allegretto de 10:35 minutos do mais puro sentimento de felicidade e agradecimento após a tempestade.
Em Garanhuns, na casa de meus pais, havia um batalhão de empregadas domésticas, juntando parentes e aderentes. Uma delas não morava no quarto do quintal. Vinha vezes na semana para lavar a roupa no lavador que ficava no lado de fora de casa, comunicando-se por uma janela com a área da cozinha. Mariquinha, chamava-se, com seu cocó de cabelos grisalhos presos à moda da época para mulheres velhas (terá sido jovem algum dia?). Possuía artes de benzer com galho de planta para tirar mau olhado; e cuidava de um jumento que morava no calçamento de paralelepípedos da rua mais nobre da cidade, a Avenida Rui Barbosa. Aleijado, caminhava com a pata mais curta que as outras três escorada no meio fio do estreito jardim que separava mão e contra mão nessa avenida. Garanhuns era uma cidade florida nas praças e nos jardins das casas; o jardim da minha casa era plantado de rosas.
Pois bem, além de benzedeira, Mariquinha também era amiga dos animais. Ninguém que maltratasse bicho perto dela. Disparava sua voz grossa, quase de homem, a desacatar o humano. Aquele jumento, a quem ela levava água, resmungando e dizendo “coitado do polodoro”, alimentava-se, ajudando o trabalho da prefeitura, comendo os matos crescidos nesses estreitos canteiros centrais que separavam a avenida, em vez dos horrorosos e imensos gelos baianos pintados de amarelo da Avenida Norte do Recife, que Joca Souza Leão já propôs em crônica que virassem de ponta cabeça e se transformassem em vasos floridos. Sonhar é arte de poeta.
Um dia de tempestade, relâmpagos, trovões, raios, Mariquinha largou o serviço da roupa e veio quase correndo ajoelhar-se no santuário do quarto de hóspedes de nossa casa, onde costumávamos rezar o terço no mês de maio, mês de Nossa Senhora, logo meu pai retornava do consultório. Ali, em frente aos santos, a pobre velha acendeu uma vela e pôs-se a rezar, em sussurros que se ouviam da saleta contígua. “Rezando para que, Mariquinha?”, ouvi meu pai perguntar, quando se levantou da sesta. Ao saber o motivo, vi uma cena que parecia bíblica, Jesus expulsando do templo os fariseus. Não, Mariquinha, não peça para Deus parar a chuva. Louve a Deus pela chuva abençoada, que veio para fecundar os frutos da terra. Esse amor do sertanejo e do agrestino à chuva. Alegria da tempestade que antecede o aguaceiro, não de chuvinha miúda, mas de água que Deus mandou para encher açudes e escorrer pelos telhados, tirar telhas do lugar, pingar dentro das casas em baldes improvisados. É tudo festa. A alegria cinzenta das águas do dia de São José anunciando bom inverno.
Tolstói, o maior dentre os russos da era czarista, descreve a cena final de Anna Karênina com uma tempestade que antecede a descoberta filosófica (narrador intruso) do controverso personagem Liêvin, alter-ego do escritor. Em Beethoven, o quinto movimento da sexta sinfonia, a calmaria que sucede a tempestade, a felicidade e o agradecimento. Em Tolstói, Liêvin se dá conta, não para professar, mas para acalmar suas angústias, dos valores simples, religiosos, que orientam a vida do camponês russo.
Para acompanhar um curso pelo Skype de uma professora russa sobre a obra Anna Karênina, reli o livro. Impressionante como me pareceu estar lendo pela primeira vez. É assim com a obra de arte, em qualquer campo. Até no cinema, quando é arte.
Ontem assisti a um filme que concorre ao Oscar,” Parasita”, do sul- coreano Bong Joon-ho. É desses filmes que merecem ser vistos duas vezes, como fiz recentemente com Bacurau, de Kléber Mendonça Filho. Do outro lado do mundo, com forte influência hitchcockiana, conta uma história sobre o capitalismo do século XXI, pela desigualdade de classes entre duas famílias, os Kin e os Park. Bacurau também fez a sua leitura do lado de cá, com a nossa história, bem diversa da Coreia do Sul, ambos antenados no que só os artistas conseguem captar, o horror do presente à volta de todos, naturalizado. Como se isso estivesse chegando a um ponto de inflexão, intolerância, apontando caminhos nada pacíficos, que só os artistas pressentem. Pois eles não são profetas que preveem, como pretendem a ciência da economia e da política. Eles pressentem.
A tempestade estava lá, no desfecho violento e simbólico do filme de Bong Joon-ho. A cena mais forte, simultânea na mansão dos ricos e no porão dos pobres.
Aonde será que se armazena em nossos neurônios o impacto da obra de arte, que, ao revisitar, tudo parece novo? Em algum lugar fica guardado. A vida pacata da menina Emília é profundamente abalada por uma revelação, no dia de seu aniversário de treze anos. A cena já estava escrita. Nela, como em todas as outras, houve revisões e revisões e cortes e acréscimos. Na última, acrescentei uma tempestade. E aquela tempestade foi tão minha, que não pensei que ela já estaria guardada numa comunhão profunda que a gente faz com a obra de arte, quantas vezes a revisitar. Na releitura de Tolstói, não lembrava de muitas passagens importantes das setecentas páginas do livro. Porém sei que li, porque estava lá, grifada com meu lápis.
comentários recentes