Clemente Rosas

Casa de Engenho.

                                                  Para Dona Bela, e seus filhos e netos

Dois anos atrás, comecei a escrever os “causos paraibanos”, histórias contadas por meu pai, ou vividas na minha infância.  E os personagens mais ricos dessas histórias talvez tenham sido, ao narrar suas aventuras, meu tio-avô Joca Viriato, senhor do engenho Utinga, e seus descendentes. Mas terminei a crônica com uma nota melancólica sobre o destino provável do cenário e dos figurantes.  Imaginava Utinga reduzida a simples memória, e seus herdeiros perdidos na bruma do anonimato, ou no poço sem fundo do não-ser.

Ocorreu, no entanto, que, quase um ano depois, o texto veiculado nesta revista eletrônica mereceu comentário de um neto do meu protagonista, residente em São Paulo, que se apresentou para confirmar o relato, e agradecer as referências feitas ao seu avô.  E de forma ainda mais surpreendente, recebi, no começo deste ano, o telefonema de outro primo, de cuja existência nem desconfiava. (Não soube também como descobriu meu telefone).  E este me deu notícias de Utinga, hoje reduzida a um pequeno sítio, e da senhora sua mãe, última filha de Joca Viriato, que, aos oitenta e tantos anos, queria conhecer o parente que havia dado forma escrita à narrativa de fatos do seu passado.

Fiquei sabendo, então, que meu tio-avô teve três mulheres, e muitos filhos (eu tinha notícia apenas dos dois da primeira esposa).  Com a morte dele, o inventário durou muitos anos, ao longo dos quais seus bens foram sendo, por necessidade, dissipados.  Mas a esposa sobrevivente, conceituada professora na localidade, e conhecida como Dona Bela, conseguiu preservar, com seus filhos, um pequeno pedaço daquela imensa propriedade.

Enfim, combinamos que eu iria visitar o palco remanescente das minhas encenações, já que Marés, a fazenda do meu avô, literalmente não existe mais.  Declinei do convite para o almoço, para não abusar da hospitalidade de parentes que ainda iria conhecer.  E saímos num domingo, eu e minha mulher, em demanda do lendário rincão.

A placa à margem da BR-101 ainda existe, apontando para o lado do mar, e sinalizando uma estradinha em meio ao canavial.  Avançamos driblando poças e sulcos profundos provocados pelas chuvas, até vermos, à esquerda, uma construção tosca, que se apresentava como bar.  Indaguei por Utinga, e me decepcionei com a resposta de um dos frequentadores: “É aqui!”

Quase desanimando, perguntei pela casa de Dona Bela.  E fui prontamente informado, para meu alívio, de que ficava logo adiante, após uma ladeira em curva, com portão do lado direito da estrada.  Equilibrando o carro entre os sulcos ainda mais profundos da descida, chegamos afinal à porteira da chácara, e a adentramos.  A decepção deu lugar a uma grata surpresa.

Cercada por um gramado verde e mangueiras frondosas, no alto de uma suave colina, divisamos uma casa moderna, com ampla varanda para o nascente, típica construção de granja, simples e acolhedora.  Ao pé da elevação, uma piscina.  A nossa anfitriã estava no terraço, rodeada de filhos, filhas e netos, e todos nos receberam carinhosamente.

Depois das apresentações, um tanto trabalhosas – quem era filho de quem, noras, genros – e tendo-me também identificado para confirmar o parentesco, ouvi novas histórias do senhor de Utinga e sua descendência, pois tinha notícia apenas dos filhos mais velhos, do primeiro casamento.  Histórias nem sempre exemplares, aos olhos de hoje, mas típicas do patriarcado rural daquele tempo: extremo rigor para com as filhas, laxismo para com o “sexo forte”, a começar pelo dono da casa.  E pude avaliar o prestígio da velha professora na comunidade, ao ponto de ter contribuído para dar-se o nome de João Viriato ao grupo escolar das redondezas.  Aliás, seu aspecto não traía a personalidade: uma senhora morena, lúcida, tranquila, expressando no rosto e nos gestos aquela placidez das pessoas que sabem ter bem cumprido a sua missão na terra.

Lamentei, contudo, saber que nada mais restava do que suponho ter sido a sede do engenho: o tradicional conjunto de casa grande, senzala e galpão fabril.  Mas voltei com a alegria de ter encontrado parentes desconhecidos – mesmo alguns tendo residido, incógnitos, perto de nós, em João Pessoa – e sabê-los bem, ajustados a uma vida de classe média como a nossa, e com a sensibilidade de ter preservado, minimamente, o teatro de sua infância aventurosa.

Devo essa alegria às virtualidades da comunicação eletrônica, que, com seu alcance imprevisível, viabilizou o nosso encontro. Logo eu, com tantas reservas em relação às publicações em tela de computador, que não me passam a sensação de permanência e concretude das páginas de livros e revistas.  Até mesmo dos jornais, que, essencialmente efêmeros, podem sempre ser recortados no que nos interessa, e guardados em pastas e álbuns.  À revista eletrônica “Será?”, portanto, meu caloroso agradecimento.

 

OBS: Os textos em que há referências a Joca Viriato são “O Roubo de Pensamento” e “Joca Viriato e sua Descendência” (Causos Paraibanos –V)