Aborto – Paula Rego.

 

Nos Estados Unidos, a Suprema Corte acaba de estabelecer limites ao direito de abortar (em 25/06/2022). Por 6 a 3. Sem que sejam conhecidos os argumentos, por ainda não terem as atas do julgamento vindo a público. Mudando entendimento que vinha desde 22/01/1973, por 7 a 2, no caso ROE x WADE. Dita ROE (Norma McCorvey) defendia que mulheres tivessem direito a seus corpos, com base na 14ª Emenda (à Constituição dos EUA), que garante a privacidade – como já reconhecido no caso Griswold x Connecticut. Enquanto Henry WADE, promotor público no condado de Dallas, simplesmente pretendia aplicar a lei do Texas – que proibia abortos, exceto quando houvesse risco de morte para mães grávidas. E ainda juntou, ao processo, mais de mil depoimentos de mulheres que se arrependeram depois de terem feito aborto. Só para lembrar, ROE logo deu seu indesejado filho para adoção. O que é triste. Mas esse julgamento é passado. Não vale mais.  Cada um dos 51 estados americanos vai agora decidir se aceita, ou não, esses abortos (e 21 já declararam que proibirão). O presidente Biden disse dos Justices (assim são nomeados os ministros da Suprema Corte, para diferenciar dos demais juízes, conhecidos como Judges), que seriam “extremos” e “alienados”. Lá, uma crítica normal. Aqui, seria logo considerado “ato antidemocrático”; sendo o autor da frase processado, em inquérito secreto, pelo ministro do Supremo Alexandre de Moraes.

Já na Itália, pouco antes (em 19/06/2022), Federico Carboni, de 44 anos, tornou-se o primeiro caso de eutanásia, no país, autorizado pela justiça. Natural de Senigalia, “Mario” – como foi inicialmente nomeado, para manter seu anonimato – era tetraplégico por conta de um acidente. Vivia na dependência dos outros, para tudo. E considerava esse fardo insuportável. Sob supervisão do médico Mario Riccio, ele próprio aplicou sua injeção letal. Usando, para isso, um dedo – única parte do corpo que ainda conseguia mover. Os recursos para comprar as drogas fatais vieram do público, através da internet. E, antes de partir, deixou bilhete para sua mãe: “Lamento dar adeus à vida, seria falso e mentiroso se dissesse o contrário, porque a vida é fantástica, e só temos uma. Mas agora estou exausto”.

São dois destinos bem diferentes. Opostos. Duas decisões quase no mesmo dia. “Malhas que o Império tece”, diria Pessoa (O menino de sua mãe). Nos Estados Unidos, garante-se que pessoas não morram. Enquanto, na Itália, uma pessoa escolheu morrer. Nos Estados Unidos, mães se sentem felizes por verem seus filhos sem nascer. Enquanto, na Itália, uma mãe chorou quando viu seu filho se despedir da vida. Nos Estados Unidos, a Justiça garante a vida. Enquanto, na Itália, garante a morte. Devemos chorar por essas almas. A dos que não chegaram a nascer. E a de quem desistiu de viver. Descansem todos em paz.

P.S. Ana Maria (Rosa Borges) Roichman informa que o poema trágico recitado em francês por sua mãe Geninha, como referido na última crônica, era Déjeuner du Matin (no livro Paroles), de Jacques Prévert. Aqui vai, para quem se interessar.

 

Il a mis le café

Dans la tasse

Il a mis le lait

Dans la tasse de café

Il a mis le sucre

Dans le café au lait

Avec la petite cuiller

Il a tourné

Il a bu le café au lait

Et il a reposé la tasse

Sans me parler

 

Il a allumé

Une cigarette

Il a fait des ronds

Avec la fumée

Il a mis les cendres

Dans le cendrier

Sans me parler

Sans me regarder

 

Il s’est levé

Il a mis

Son chapeau sur sa tête

Il a mis son manteau de pluie

Parce qu’il pleuvait

Et il est parti

Sous la pluie

Sans une parole

Sans me regarder

 

Et moi j’ai pris

Ma tête dans ma main

Et j’ai pleuré.