I
Quando percebeu que urgia tomar uma providência, e tão logo começou a fazer a ronda de especialistas e hospitais, expondo-se de mau grado à sisudez e à impontualidade dos médicos, Dionísio se deu conta de que todos os prazos estavam irremediavelmente vencidos e de que já não lhe restavam opções à mão para recuperar a saúde perdida. Era questão de tempo até que estivesse condenado à cama por um longo período. De lá, se tudo corresse bem, faria jus a uma poltrona e, se voltasse a caminhar por um período de graça, dificilmente conseguiria se desvencilhar de alguém para auxiliá-lo, ou de um andador daqueles de filme americano. Quando a sobrinha lhe disse que talvez as coisas não fossem assim tão radicais e que sempre lhe restaria o recurso à imaginação e às memórias para compensar as limitações físicas, ele baixou a cabeça e, para não parecer soberbo, assentiu com um meneio. Efetivamente, a vida também era feita de capítulos amargos e integrava o mistério encarar com elegância as quadras mais aziagas, especialmente aquelas que assinalavam o fim do estoque recursal. Da nitidez do diagnóstico, não havia sequer uma nesga a franquear ao autoengano. Convinha pois, perseverar sem fazer muita força, manter a altivez sem afugentar os próximos, e evitar a todo custo se tornar um peso maior do que já era. Mais adiante, quando o garrote da doença apertasse os cravelhos cruéis, sempre poderia recorrer à morfina e aos paliativos clássicos, hoje elevados a ciência. Por intuição, imaginava que quanto menos usasse morfina, mais poderia testemunhar a coreografia da morte a bailar à sua volta. E muito embora já não fizesse sentido registrar as mesuras das pessoas que passaria a ver diariamente, pelo menos elas lhe trariam os ecos da civilização que estava deixando para trás. É claro que havia opções ao calvário, mas o suicídio lhe parecia francamente destituído de senso de humor mínimo e, de uma forma ou de outra, sintomático do medo em estado puro. Nesse ponto, Dionísio admitia que vinha de um longo histórico de superá-lo, sempre que este lhe arreganhara os dentes. Por que fazer diferente logo agora, quando o espectro atende por nome conhecido e, até mesmo por decurso de prazo, prepara-se para fazer sua última e triunfal investida? Não, iria sim até o fim e sem queixumes de quaisquer ordens. Esta era a lei dos valentes. Na dúvida, seguiria o conselho da sobrinha. Fechando os olhos, imaginou o quão benfazeja seria a companhia de certa mulher filipina. Mesmo sabendo que esta ficara para trás e estava muito longe dali, sorriu com alegria.
*
Nos dias turbulentos que sacudiram as Filipinas em meados dos anos 1980, Felipa de los Rios trabalhava no cabaré “Blue Hawaii”, na área portuária de Manila. Com a partida para o exílio do séquito que dava cobertura a Ferdinand Marcos, era certo que o inglês David logo também fosse deixar o país. Para Felipa, não poderia haver notícia mais desoladora. Não somente porque idolatrava a família do velho ditador, de quem sua mãe sempre se declarara prima distante, como também porque os tempos novos prenunciavam um arrefecimento nos negócios sem precedentes. As Filipinas batiam o fundo do poço, tufão após tufão devastava o arquipélago e os esquerdistas fiéis à família Aquino, os novos mandatários, não eram de se entregar às delícias da noite tanto quanto os mercenários que gravitavam em torno do ditador deposto. Felipa amava David Sherwood, o troncudo britânico que bebia litros de gim sem se deixar embriagar e cujo apetite por ela desmentia a fama que tinham seus compatriotas de terem péssimo desempenho na cama. Gostava daquele homem e o seguiria para onde quisesse. Como a derrocada dos ocupantes do palácio de Malacañang era inevitável, ele vinha lhe falando de polpudas ofertas que recebera da Líbia, para trabalhar no círculo íntimo de Gaddafi. Quando ela disse que não se importaria em se mudar para o Mediterrâneo para ficar ao lado dele, os olhos azuis de David traíram alguma amargura, mas ele se saiu com a resposta esperada. Quem estava naquele ramo, baby, simplesmente não podia ter mulher fixa. Mulher combina com desatenção e atrai perigo. E de perigos, ele sempre estivera bem provido. Assim sendo, Felipa vinha considerando deixar o país e seguir o rumo das patrícias estabelecidas em Hong Kong. Sua maior amiga, Irene, trabalhava no Volvo, então considerado o maior cabaré do mundo e ganhava bem a vida. Como única concessão à modéstia das origens, gostava de se reunir com as conterrâneas sob o vão do HSBC, em Kowloon, para comer arroz com leitão, falar tagalog e escrever cartas aos familiares. Era em tudo isso que Felipa pensava quando recebeu um telefonema do Hotel Manila – o local lendário que tinha o dedo “kitsch” de Imelda Marcos em cada detalhe -, dando conta de que um cavalheiro sul-americano queria companhia. Foi assim que conheceu Dionísio. E com ele passou dois dias na cama enquanto o tufão uivava e vergava os coqueiros. Felipa, que por um momento se vira sem norte, encantou-se com aquele homem que jamais a esqueceria e que, pelos próximos anos, faria com que visse a vida como uma enorme festa.
II
No estágio em que se encontrava, era difícil para Dionísio discernir que visitas eram bem-vindas e quais delas eram deliberadamente desagradáveis. Tudo dependia do momento, do estado de espírito, mas sobretudo da atitude de quem chegava. Ele, o paciente, era um ente passivo, quando muito uma esponja que tudo absorvia. Nesse contexto, as pessoas mais queridas podiam, em dado momento, suscitar as piores sensações. Isso porque se sentiam na obrigação de travar conversas ditas de conteúdo e estabelecera-se há muito uma disciplina de entreter colóquios originais e inteligentes. É bem verdade que elas também se resignavam a fingir normalidade e a fazer de conta que também acompanhavam a novela, disfarçando com elegância o quanto queriam que a visitação chegasse ao fim. Mas tinha uma gente inverossímil que o surpreendia. Era o caso de pessoas mais simples – muitas vezes admiradoras amoitadas que nunca tinham tido a oportunidade de demonstrar a atração que sentiam, ou de cavar alguma proximidade com ele. E era ali que elas se revelavam insubstituíveis porque agiam como se a relação estivesse apenas começando, o que não deixava de ser verdade, a despeito de Dionísio estar morrendo. A esse grupo, pertencia uma mulher que fora próxima na juventude, mas que se evaporara por décadas. Previsível e algo tola, pouco importando agora que mantivesse as belas nádegas de que ele lembrava, tinha tudo para ser companhia enfadonha. E, no entanto, naquela circunstância, era talvez quem melhor captava seus desconfortos e limitações, a ponto de vez por outra fechar a porta a chave para se empenhar, com sucesso, em gratificá-lo com prazeres que, no final, se revelavam mais intensos do que ele poderia imaginar voltar a ter. Já com Honório, um boa praça de décadas, o diapasão era outro e suas visitas se tornavam tediosas, a ponto de ele fingir que adormecia para pretextar a escapulida do amigo. Por que fora lhe contar, por exemplo, uma passagem banal sobre uma viagem à Turquia? A figura de um enorme avião sequestrado pela alvura das neves levou o visitante a fazer analogias à situação hospitalar em que ele se encontrava. Para ele, Dionísio era o próprio boeing do relato, e o lençol que encobria cânulas e apetrechos, era a neve que o impedia de chegar ao destino. Irritado, Dionísio bradou: “Daquela vez, seu idiota, eu tinha o que comemorar. O terminal em Istambul era só um edifício. Aqui, por incrível que lhe pareça, eu não tenho pressa de chegar ao terminal”. Para Honório, isso só reforçava o acerto da analogia. “No dia que você quiser voltar aqui, deixe Freud no estacionamento, cacete”.
*
Dionísio era bastante experiente em viagens aéreas para perceber quando algo estranho ocorria lá embaixo, no aeroporto de destino. Do alto dessa bagagem, sabia que havia problemas para o pouso do voo TK 16, um portentoso boeing 777 da Turkish Airlines, que partira de São Paulo há mais de 14 horas e que chegava ao cabo do trajeto e, por pouco mais, ao fim da autonomia no ar. Isso porque o avião se manteve a 11 mil pés durante mais de um hora nos intermináveis instantes que antecederam a chegada, e vinha circulando em forma de um “oito” deitado sobre o Bósforo e vastas adjacências, intercalando os ares da Europa com os da Ásia. De tão entediado e irritadiço, Dionísio cansou de acompanhar o sinuoso balé das asas sobre distantes pontes iluminadas e abriu o enfadonho diário de um ex-Presidente da República, cujo exemplar dormira a maior parte do tempo na bolsa da poltrona à frente. Talvez pensasse, lá no fundo, que este pudesse ter feito referências a conhecidos seus ao longo da obra, mas o índice onomástico provaria que se equivocara. Por que não o consultara antes de gastar 80 reais com o pesado presente que se dera? Agora tinha que entreter-se com relatos sobre homens provectos e sem maior interesse. Então, voltou a fechar o livro e concluiu que certo mesmo era que alguma coisa de anormal acontecia naquele momento em Istambul, a ponto de impedir que rompesse o ano em terra, como era o desejo de todos a bordo. O que seria? Um atentado no aeroporto, como já sucedera na semana anterior em outro ponto da cidade? Um terremoto de grandes proporções, fenômeno comum ali e na região? Ou teria sido uma ocorrência meteorológica que tivesse surpreendido os turcos em pleno Ano Novo? Pois bem, a verdade muitas vezes está no mais singelo. Efetivamente, uma forte nevasca vinda da Sibéria atrasou mais de duzentos pousos e decolagens e, embora contente ao sentir as rodas tocarem a pista e ao escutar o ruído inconfundível dos reversores a pleno, faltando apenas 30 minutos para o réveillon, a frustração logo o tomou de assalto quando viu que o imenso avião permaneceria parado numa pista lateral, afundado na massa branca, à espera do rebocador, com o frio polar se condensando rapidamente sobre as asas. Ao ver este panorama, concluiu que os passageiros não chegariam ao terminal antes da meia-noite. Com o vidro da escotilha salpicado de flocos brancos e resistentes, Dionísio Wiener, engenheiro civil e empresário, ouviu resignado os votos de “Happy New Year” do comandante. Paciência. Mesmo assim, por alguma boa razão, estava feliz. À sua espera, no ruge-ruge do terminal, Luísa sorria.
III
Se era assim que as coisas tinham que ser, e se o vaticínio constava de alguma lei invisível, ele não saberia dizer. Mas o fato é que estava serenamente resignado à nova vida, como jamais pensara possível. Não invejava sequer os que se preparavam para viajar e iam até ele para um dedo de prosa. Diante dos planos do sobrinho para passar duas semanas no Sri Lanka, escutava-os com uma ponta de piedade, como se os muros do hospital e a paz dos corredores – raramente interrompida -, encerrassem um mundo mais humano e aconchegante. Normalmente, nos dias que sucediam as tais aplicações que o prostravam, navegava num estado de letargia em que tudo se misturava num torvelinho tão enebriante quanto uma bebedeira de juventude. Assim sendo, se a televisão falava do encarceramento do ex-Presidente, ele se detinha no detalhe da imagem, alheio à dramaticidade do espetáculo. Então, pensava: que grande mal há em se hidratar com uns golinhos de cachaça para encarar o momento? E ria. Se era efeito da medicação ou não, pouco importava. Se pensasse bem, talvez a crônica de rodapé sempre lhe interessara muito mais do que a grande História. Nas viagens que ele próprio fizera ao mundo, nem sempre tivera a cabeça nas grandes atrações do destino. Muito mais do que elas, atentava para os incômodos das travessias de fronteira; para a linguagem não verbal dos povos; para os conceitos de beleza vigentes e os hábitos cotidianos. Como podia ser diferente agora? Cilene, a enfermeira, dissera à sua acompanhante polivalente, aquela que fazia aparições bruscas e inspiradas, que a novela duraria mais uns dois meses. Dois meses? Mais isso era uma eternidade. Será que conseguiria acompanhá-la até o fim? Àquela altura, o drama divertido do médico homossexual se tornara mais premente do que o uso de gás na Síria. Que Honório não soubesse. Será que a doença o transformava pouco a pouco num homem frívolo? Ou simplesmente vinha abaixo a máscara da seriedade e, ali sim, ele se revelava como sempre fora? Na verdade, pouco importava. Todas as glórias que ele pensara em se atribuir, estavam agora reduzidas a um crânio liso, a delírios que misturavam tempos verbais, e a uma sopa miserável que o forçavam a tomar pouco antes da novela ir ao ar, como se uma coisa estivesse condicionada à outra. No dia que sentiu recobrar algum vigor, deparou-se com o primo Sílvio que trouxe à sua cabeceira o rabino Goldlust. Então se surpreendeu ao vê-lo balançar a cabeça positivamente e vibrar com o relato de Dionísio sobre certo templo na Índia. “Os judeus também estiveram lá”.
*
O ano se encaminhava para o fim e eles saíram de Nova Déli logo cedo, antes das oito horas. Segundo o concierge, antes desse horário a neblina não os deixaria progredir e tornaria o trajeto temerário. Muito mais tarde, os engarrafamentos também os impediriam de avançar a boa velocidade que ali podia ser não mais de setenta quilômetros. O carro era confortável e Dionísio se instalou ao lado do motorista, uma figurinha minúscula e, aparentemente, segura do que estava fazendo, tanto quanto permitem aquelas estradas caóticas. Clara Moser, acomodou-se no banco traseiro ao lado da cesta de mantimentos que mandara preparar no hotel Taj Mahal. Quando entraram em Himachal Pradesh, tudo melhorou. A qualidade do ar, as cores vivas e uma certa fé na vida, seriamente abalada pelos dias sombrios nos becos da capital. No meio da tarde, chegaram ao sopé da cordilheira do Himalaia. Na beira da estrada, macacos se aqueciam ao sol, como se reverenciando os enormes caminhões multicoloridos que se arrastavam morosos. No pára-choque, o aviso “buzine forte” chamou a atenção de Dionísio que quis apontá-lo para Clara, mas que desistiu ao ver que ela cochilava. Quando escureceu, pararam num hotel ordinário. Segundo o motorista, era excelente, embora ele não fosse admitido. Dormiria junto ao viveiro de emas, disse. Dionísio argumentou com o dono da estalagem que queria o motorista descansado e que não o deixaria cochilar no carro, sob temperatura negativa. Aliás, não diziam que o sistema de castas fora abolido? No final, tudo deu certo. À tarde, chegaram a Dharamsala. O réveillon se resumiu a um passeio pelas ruas de Mcleod Ganj, nas ruelas que levam à casa do Dalai-Lama. Depois de um almoço vegetariano de Ano-Novo – era o único menu confiável –, foram até Dharamkot para ver o templo. No dia seguinte, estavam ótimos e com bons espíritos. Percorreram uma centena de quilômetros a salvo da neblina e das colisões e chegaram ao Punjab. Uma gente amalucada tentava interceptar o carro nas cidadezinhas. Laxmi, o motorista, disse que eram aldeões bêbados à saída dos casamentos da época. Naquele dia, queriam chegar a Amritsar – fronteira com o Paquistão – e visitar o Templo Dourado. Munidos de uma garrafa de álcool em gel, deixaram os sapatos com os guardadores e Clara Moser encobriu os cabelos ruivos. Apesar do frio e do chão úmido, ficaram lá até tarde da noite. O templo fica no meio de um imenso lago artificial onde os sikhs se banham com a mesma devoção com que os hindus entram no Ganges. Profanar esse templo manu militari, custara a vida a Indira Gandhi.
IV
Dia após dia, os momentos altos da existência se resumiam aos afagos da visitante e, bem entendido, à hora da novela. Fora feliz? Estivera à altura do que projetara? A resposta era sim porque até pouco tempo recebera um quinhão dadivoso da vida. Por outro lado, sairia muito cedo da festa. Lutar por lutar, pensando bem, era um exercício pueril e pouco digno de um cavalheiro. Nos últimos anos, admitia que perdera um pouco da aura majestosa que o acompanhara como uma sombra. Mas quem o conhecia, sabia que não fosse pela fatalidade daquela enfermidade, tivesse ele vivido mais uma década, e poderia estar alinhado aos melhores de seu tempo. Na verdade, a sensação de que algo de fundamental lhe escapara à última hora, não era de todo inédita. Já a vivera outras vezes: perdera um grande fee de arbitragem por conta de um detalhe bobo, aventado à última hora, negociação esta que poderia ter-lhe rendido o equivalente a 5 anos de labuta. Em algum lugar estava escrito, sem que ele soubesse, que Martina jamais seria sua e que, em dado instante, seus caminhos se desencontrariam, sob alegações várias de lado a lado? Na política, terreno em que Dionísio projetara para si uma imagem desproporcional, estacionou no rodapé da história alheia, e nem todas elas foram edificantes. De mais a mais, como abraçá-la se não era movido a genuíno amor ao próximo? A festa que projetara para os 72 anos – tempo de vida de seu pai, que fixara como seu mínimo tolerável -, agora ficara tão distante quanto os anéis de Saturno. Com todos os recursos do mundo para entreter a família durante uma semana no Mar Egeu, eis que sucumbiria a uma doença aviltante, indigna de quem sempre fizera face a perigos reais com a certeza de que tinha corpo fechado. Era fatal que logo entrasse em estado de inconsciência absoluto. E então teria que aturar, de onde estivesse, os obituários enfatuados e lacrimosos de Honório, o homem que queria atribuir significado a tudo. Não, não levaria ressentimentos de ninguém em particular, mas deplorava desde já a sorte da humanidade como um todo. Do Brasil, jamais esperara tanto e há muito este já se tornara para Dionísio um país como outro qualquer. Pretendia dedicar a velhice, que jamais conheceria, à redação das memórias e à classificação de papéis. A mulher que não achara agora assumia finalmente contornos nítidos: deveria ter casado com uma bibliotecária japonesa. Teria equivalido a uma escolha na linha de Borges, com sua Maria Kodama. Mas é normal que o destino prevaleça sobre as conclusões e que nos sobreviva para deixar lições aos interessados. Inclusive quando o soldado alvejado se chama Dionísio Wiener.
*
O mais devastador da viagem a partir da Malásia for ver os imensos terminais aéreos vazios. Embora seja distante de Kuala Lumpur como nenhum outro aeroporto fica de uma capital, trata-se de uma construção arrojada. Um hub espalhado, horizontal, projetado para as necessidades dos próximos 30 anos. Era, segundo comentou Dionísio à Giulia, o palco perfeito para o crescimento da companhia aérea nacional. Mas eis que sumiu um avião a caminho de Pequim, cujo paradeiro permanece desconhecido até hoje e que está envolto em mistério tal – próprio de uma cultura onde vicejam as teorias conspiratórias -, que não são poucos os que juram que o jato jaz intacto em algum aeródromo remoto. Depois, em desdobramento igualmente funesto, embora menos misterioso, eis que outro avião foi abatido por um míssil terra-ar russo e se desintegrou sobre o Donbass, na Ucrânia. Este vinha da Holanda e trazia a bordo uma coroada constelação de cientistas. Ambos os acidentes ocorreram a curto intervalo um do outro. Ora, como evitar que aquela infraestrutura aeroportuária monumental – bem ao lado do autódromo de Sepang – não assomasse como a primeira vítima dos sucedidos? Que empresa pode resgatar credibilidade numa região do mundo onde os povos são, ademais, místicos e reféns de superstições? Não, decididamente a Malásia e a companhia aérea não tinham como escapar incólumes de tamanho infortúnio. Daí que voar na Malásia, para a Malásia ou da Malásia continua ensejando sentimentos negativos na mente dos viajantes. Nessas horas, o que mais faltava? Ora, duas desgraças chamam uma terceira. Pois eis que o ditador da Coréia do Norte mandou assassinar o irmão ali mesmo, no grande saguão, à vista das câmaras. Fato é que o país sofreu um dano importante, mas nada disso impede que seja um destino atraente. A veia empreendedora chinesa responde pelo afluxo de riqueza e uma mão de obra bem treinada se mostra à altura das apostas que ali fazem investidores globais. A vizinhança com a pujante Cingapura reforça a competitividade muito embora, sob alguns aspectos, oblitere alguns dos fatores críticos de sucesso que poderiam impulsionar o país. Foi pensando em tudo isso que Dionísio Wiener decolou para o norte da Tailândia, onde tudo mudaria. Mas por várias ocasiões naqueles dias que passou com a bela fiorentina, até mesmo quando o calor do estreito de Málaca o fez se sentir no inferno, ele parou para pensar que pessoas, empresas e países têm uma espécie de carma. E que pouco podem fazer para abafá-lo, apagá-lo, minimizá-lo ou neutralizá-lo. “Dio mio, logo você que é tão racional”, disse Giulia, a filóloga.
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