Verba volant, scripta manent (as palavras voam, os escritos permanecem). No nosso caso, as minhas palavras não apenas voam e se perdem: suscitam outras, suas, muitas vezes duras como punhais. Por isso resolvi deixar por escrito o que tenho a lhe dizer hoje, quando completamos trinta e cinco anos de casados.
Pois é, não esqueci. E embora não possa fazer uma grande festa, como seria razoável, felicito-me pela vida vivida até agora, e pela que ainda espero viver, ao seu lado. 35 anos não são 35 dias. Com tanto tempo de convivência, ficamos impregnados um do outro, ainda mais pelo traço de união que é a nossa filha, fruto sazonado de tão longo amor. Como diz o velho bolero mexicano:
Tanto tiempo desfrutamos nuestro amor
Nuestras almas se acercaram tanto así
Que yo guardo tu sabor
Pero tu llevas también
Sabor a mi
Sei bem que o desgaste da rotina, da vida doméstica, faz o coração cansado. E que a vida não pode ser só para nós dois: é cheia de intercorrências, que não podemos desconhecer nem rejeitar. Mas é a que temos, e nos cumpre vivê-la bem, esforçando-nos para não perder a ternura, como recomendou Guevara, o poeta-revolucionário que soube morrer por sua causa.
Concordar com tudo não é prova de amor, mas de pusilanimidade. Ou de hipocrisia. E estes não se contam entre os meus defeitos. Jamais concordaremos em tudo, nem isso é necessário. Havendo um substrato de ternura, sempre haverá campo para o entendimento.
Já não espero ver nos seus olhos aquele deslumbramento dos primeiros tempos. Guardarei dele as melhores lembranças, como guardo a visão comovida, ao fundo do vale verde de Goiana, daqueles coqueiros, daquelas mangueiras em tom mais escuro, das torres das igrejas, que escondiam a dona do meu coração, no tempo de um amor ainda sem esperanças. Hoje, basta-me apenas um pouco de carinho e de compreensão para aquilo que não puder fazer por você.
Trinta e cinco anos. E a mesma disposição minha de amar, com o corpo e com o espírito, agora e sempre com uma teimosa esperança de retribuição. É bom sonhar.
Clemente, você usa as palavras com a habilidade dos poetas e nos inspira a todos os sentimentos mais doces. Parabéns pela vida a dois, pela data, pela sensibilidade.
Meu caro Alcides,
Agradeço, sensibilizado, o seu comentário. Não esperava que meu texto despertasse grande interesse dos nossos leitores. Na verdade, ele foi escrito há sete anos, embora só fosse conhecido, até agora, pela sua destinatária. Foi passado a João Rego, para ficar como uma “reserva de pauta”, há alguns meses, e agora desarquivado. Não voltei ao tema, nos sete aniversários que se seguiram, por sentir que não conseguiria escrever algo melhor.
Se as minhas palavras tiverem o dom de despertar os sentimentos de que fala você também em outras pessoas, não poderia ter eu maior recompensa.
Grande abraço.
Clemente
Prezado Clemente,
Tenho aberto nossa “Será?” menos do que gostaria, tanto as andanças pelo mundo têm exigido de minha alma meio alquebrada. Foi contudo uma alegria ler esta carta tão despojada quanto verdadeira, e tão sem firulas nem artifícios. Pelo que entendi, a celebração agora já vai pelos 42 anos. Dentro de só mais 8, veja bem, teremos as bodas de ouro. Que as comemore com saúde e alegria.
Abraço,
Fernando
Obrigado, Fernando! Seus comentários, sempre na justa medida da expressão precisa, já são parte importante desta revista. Não deixe de comparecer aqui, além de cronista, também como comentador.