Lucien Freud por André Toma

Lucien Freud por André Toma

João Rego

Meu avô tinha um chapéu de Jim das Selvas. Durante sua vida toda, pelo menos a que eu convivi com ele, trabalhou como Guarda da Febre Amarela. Todos os agentes tinham aquele chapéu e uma farda caqui, que era sua marca registrada. Doença transmitida pelo bisavô do mosquito da dengue, fez um enorme estrago no Brasil. Por isso, havia os agentes do Ministério da Saúde que saiam de casa em casa, principalmente nas áreas rurais, identificando e tratando de erradicar os perigosos mosquitos. No interior do nordeste, todas as casas, no mais remoto sertão, lá no meio do mato mesmo, onde o vento faz a curva, tinham escrito em carvão ou giz, ao lado da porta, bem visível, umas letras e números indicando que a casa havia sido inspecionada. Quando abandonadas, já em escombros e tomadas pelo mato, essas inscrições eram um signo de que ali, um dia, morou ser vivente.

Nascido em Ingá do Bacamarte, interior da Paraíba, o avô foi preso aos dezessete anos por ter deflorado uma moça. Isso nos anos 20 era um crime de honra: ou o cabra casava, ou morria, ou ia para a cadeia. Como, segundo ele, a moça não era tão moça assim, mas, muito pelo contrário, era fogosa e até vestia a farda de polícia do irmão mais velho para ir quengar à noite, ele se recusou a casar. Assim, julgado à revelia, foi obrigado a fugir de fazenda em fazenda, se escondendo da polícia, até ser preso meses depois.

Resultado: dois anos de cadeia na penitenciária de João Pessoa.

Foi lá onde conheceu minha avó materna, Alaíde. Explico, antes que tirem conclusões apressadas. Minha avó ia na cadeia com sua mãe, D. Querubina, visitar um tio dela, finório batedor de carteira de João Pessoa — um dos mais famosos mesmo. Lá se conheceram.

Eu, pirralho, sempre muito curioso, gostava de conversar com os mais velhos. Ouvia encantado suas estórias. Lembro dele, no alpendre da pequena casa ao “pé do morro” Bom Jesus, com os cotovelos apoiados na mureta, de onde se avistava o Rio Ipojuca, o Campo de Monta e o Matadouro. Fumando tranquilo um charuto, falava do seu passado. Vinha de tudo, mas o que me lembro mesmo é das estórias da Segunda Guerra Mundial, de futebol e de mitologia. A gostosa brisa fria do inverno caruaruense testemunhava nossos encontros.

Como aficionado de palavras cruzadas, ele tinha vários dicionários, um deles de mitologia. Era através delas que ele aprendia sobre essas coisas. Com aquele hobby de percorrer as encruzilhadas de belas e enigmáticas palavras, escavava conhecimentos de forma prazerosa. Impressionava-me como alguém que tinha provavelmente cursado apenas o primário era tão bem informado. Foi ele quem me falou de Milton Campos, como um dos políticos mais sérios do país, me apresentando seus livros, dois grossos volumes de capa dura, com textos sobre política e desenvolvimento brasileiro.

Além de criar passarinhos, prática, naquela época, muito comum em todas as casas, tinha um hábito que incorporei dele e levei para minha vida adulta: ouvir rádio. Seu rádio enorme, de válvulas, já tinha escrito os nomes das emissoras no painel: Rádio Sociedade da Bahia, Rádio Curitiba, etc. Era este seu principal canal para saber das coisas do mundo. Na faixa de ondas curtas pegava até rádio do exterior! A Voz da América, a BBC, a Rádio de Berna na Suíça, entre outras. Tudo aquilo me encantava e, nas minhas “horas vagas”, quando não estava brincando no Morro, ou jogando bola de gude na Rua 27 de Janeiro, sentava em sua cadeira de balanço e viajava nas notícias e nas músicas. Era um sentimento que me envolvia e me enchia de curiosidade saber que o mundo inteiro entrava, através do rádio, naquela modesta casa. Via, da sua cadeira de balanço— sim, esta fazia parte do conjunto do rádio—, enquanto absorvia extasiado notícias e sons do mundo inteiro, a contraluz, a silhueta da minha avó Alaíde, indo prá lá prá cá, preparando a galinha guisada carregada de fortes temperos.

Foi dele que herdei o valioso hábito de absorver novos conhecimentos sem esperar a ajuda de professor ou escola, simplesmente me lançando na aventura solitária de enfrentar o desconhecido nos labirintos de cada livro. Aos quinze anos, já morando no Recife, voltei uma vez para as férias em Caruaru. Já não tínhamos nossa casa. Experimentei um estranho sentimento de desemparo, voltando àquele cenário, agora sem a presença do meu pai. Recordo-me, à noite, em uma improvisada rede armada no meio da sala, à luz fraca de um candeeiro, lendo sofregamente seu dicionário de inglês-português— português-inglês, como se naquele gesto de decifrar o desconhecido sentido das palavras, eu pudesse também decifrar, com intensa angústia, o sentido da vida e da morte.

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Julho, 2014.

DITOS & ESCRITOS
João Rego
joaorego.com