Fear

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O jovem casal que me escondeu em Jundiaí conhecia os riscos que corriam por abrigar um condenado político pela Justiça Militar. Jorge e Maria não pertenciam a nenhum partido ou organização de esquerda, mas eram simpatizantes da luta contra a ditadura e por um mundo mais justo. Ela estudava Sociologia na capital. Não éramos completamente estranhos, nós nos cruzamos algumas vezes em assembleias estudantis. Conheci seu marido assim que cheguei em sua casa. Jorge dirigia uma empresa de máquinas agrícolas e contava com a ajuda da esposa. Nos fins de semana, se dedicava à pintura. Moravam em casa novinha em folha com várias dependências, além de jardim, piscina e quintal, residência situada em bairro abastado, igualmente novo.

Logo após a condenação a dois anos de prisão, a repressão passou a me procurar onde morei e trabalhei. Durante esse período de busca, eu precisava encontrar rapidamente um refúgio seguro onde pudesse ficar até que a sanha repressiva a meu encalço amainasse. Eu não era um proscrito prioritário figurando no rol dos rebeldes a neutralizar imediatamente atrás das grades, no pau de arara ou cemitério. O período de caça seria breve, depois seria relegado às calendas gregas.

Constatando que não havia mais condições para seguir na direção do Diretório Central de Estudantes da PUC (DCE-SP), eu julguei que poderia dar prosseguimento ao ativismo político me deslocando para outra região do país. Deveria atuar em outra área que não fosse estudantil distante de São Paulo. Propus à direção da Ação Popular essa alternativa como forma de reduzir os riscos, desde que dispusesse de documentos falsos, evidentemente. Enquanto isso, eu ficaria oculto e aguardaria resposta durante duas ou mais semanas em Jundiaí, conforme ficou combinado com Maria.

Ao longo do tempo na residência, eu encontrava o casal à noite e em finais de semana. Eles chegavam tarde do trabalho. Dois dias da semana, Maria atravessava os setenta quilômetros que separam Jundiaí do campus da USP para assistir aulas. Por ocasião de suas idas, Maria receberia a decisão sobre minha proposta de deslocamento que lhe seria transmitida por um responsável do núcleo da Ação Popular da Universidade. Ela era meu elo com a organização.

No decorrer da estadia, eu não fui ao jardim e quintal, não me postei nas janelas, tampouco atendi à porta ou telefone. Preparava minhas próprias refeições. Também evitava ligar rádio e televisão quando estava só; o ruído em casa vazia poderia ser considerado como suspeito.

O enclausuramento foi mais longo do que estava previsto. Felizmente, atenuado pela leitura compulsiva do que havia na biblioteca da casa, além dos jornais que o casal assinava. O tempo de minha permanência como havia combinado expirou-se. A resposta sobre meu futuro militante foi o silêncio. A espera passou a ser longa e penosa, tanto para mim, quanto para o casal. Maria não mais escondia a angústia estampada em seu rosto a cada vez que retornava de São Paulo sem nenhuma informação ou contato.

O embaraço ainda perdurou por mais de dois meses. A circunstância se agravou com a visita inopinada de familiares do casal que constatou minha presença insólita. Não sei se em consequência desse encontro, o inesperado voltou a se manifestar em uma manhã. Na hora costumeira em que partia ao trabalho, Jorge me despertou aflito. Segurava em suas mãos uma carta anônima datilografada. Alguém a depositou na caixa postal durante a noite. Em dois breves parágrafos, o missivista, sem esquecer as escusas, afirmava que corria um boato à boca pequena que o casal abrigava um clandestino. Acrescentava, no segundo parágrafo, que o assunto já teria chegado aos ouvidos de fulano de tal, indivíduo pouco recomendável.

Imediatamente, Jorge me levou de volta para São Paulo. Falamos muito pouco durante o trajeto pela Via Anhanguera. Antes de partir, o casal me entregou uma quantidade de dinheiro suficiente para sobreviver alguns dias em hotel modesto. Jorge parou o carro na Avenida Doutor Arnaldo, próximo ao Cemitério do Araçá. Nossa viagem terminava ali. Já fora do veículo, eu me inclinei na altura da janela do Fusca para lhe agradecer uma vez mais. Jorge, com os olhos marejados, despediu-se com movimentos de cabeça, sem dizer uma só palavra.

Sem mais notícias do casal desde então, ainda guardo a solidariedade como lembrança.