
Da Empoli
No Brasil, uma das últimas imagens de um presidente segurando um livro foi a de Fernando Henrique Cardoso. A obra era “O Abolicionismo”, de um pernambucano de sua convivência intelectual: Joaquim Nabuco. Num artigo, à época em que o ex-presidente, foi eleito pela primeira vez, o cientista político André Singer escreveu com certa graça: “[…] no fundo do seu cérebro, uma outra equipe, que só pode ser consultada por livro, também está lhe dando conselhos [para formar o novo gabinete]”. E cita como membros dessa “equipe” autores como Marx, Tocqueville, Sérgio Buarque de Holanda e o próprio Nabuco. Falei “uma das últimas imagens” porque, como numa antonímia visual, há uma foto de Jair Bolsonaro também segurando um livro: “A verdade sufocada”, do lamentável Carlos Alberto Ustra (recuso-lhe o sobrenome “Brilhante”!).
Livros e líderes políticos quase sempre andaram de mãos dadas. Napoleão, para ficar num único e emblemático exemplo, fez anotações preciosas e pessoais a “O príncipe”, de Maquiavel, observações hoje incorporadas a algumas edições. Fetiche cultural, o livro foi, nas mãos de políticos e governantes, um signo polissêmico remetendo ao apreço da cultura, das artes, da sabedoria, da religião ou da ciência. Em geral, os “príncipes” nunca quiseram, por óbvias razões, se mostrar intelectualmente inferiores ou inferiorizados. Mas, como diz o famoso decassílabo de Camões, “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.
Anunciada por McLuhan, a oralidade de nosso tempo, por conta do advento dos meios eletrônicos, continua operando uma revanche contra a “galáxia de Gutenberg”. Agora, o que conta para os populistas, é a voz, as encenações, e isso com a vantagem da parceria instantânea das imagens. Eles vivem, para seguir a intuição de McLuhan, na esfera tribal da oralidade. São seres performáticos, adaptados às redes sociais e aos tempos midiáticos. Eles têm seguidores igualmente “tribais”, a exemplo do pitoresco “Viking do Capitólio” e dos bizarros tipos que aparecem nas manifestações de rua bolsonaristas.
Em seu mais recente livro, “A hora dos predadores”, o analista político ítalo-suíço Giuliano Da Empoli nos traz um testemunho sobre Donald Trump, que vale como exemplar ilustração dos novos tempos. Anota o autor: “Trump simplesmente não lê. […] A imagem de um Trump sentado em seu jato particular ou em uma poltrona de Mar-a-Lago com um livro nas mãos em vez de uma tela ou um hambúrguer seria classificada pelo mais ingênuo dos internautas como uma ‘deep fake’ das mais absurdas […] Ele opera exclusivamente pela oralidade” [grifos nossos]. Trump, diz Da Empoli, é um evidente exemplo “[…] de um dos princípios imutáveis da política, que qualquer um pode constatar: não há praticamente relação alguma entre capacidade intelectual e inteligência política”. Entre nós, Bolsonaro é outro exemplo e, pelo jeito, só lê minutas de golpe.
Como analisa Da Empoli (ele mesmo um personagem da vida política, pois foi assessor do primeiro-ministro italiano Matteo Renzi e vice-prefeito de Florença), antigos “outsiders” da política, como “Trump, Bolsonaro e os defensores do Brexit”, que defendiam uma estratégia do caos, estão hoje numa situação invertida: “O caos já não é a arma dos rebeldes, mas a marca dos dominantes”. Esse caos, acrescente-se, é naturalmente um inimigo dos livros e pertence ao mundo supostamente mais empolgante das ações. O pensar dos livros (“pensar” que remete à etimologia de “pesar algo”, “avaliar”, “ponderar”) não combina com a leveza (usemos este eufemismo para falar da cognata “leviandade”) da política.
A vida política não é para escritores, pensadores e empresários. Da Empoli pontua que “prodígios” das artes, das ciências e dos negócios que enveredam por ela política terminam por se frustrar: “[…] em dado momento, eles fazem uma descoberta terrível [pois] Tudo é muito mais difícil do que eles imaginavam”. Ele se refere sobretudo à inerente violência da política, na qual os inimigos mais temíveis “quase sempre se escondem dentro das próprias fileiras”.
Sem o dizer expressamente, Da Empoli, em suas amargas considerações, estará talvez pensando em si e sendo “criptoautobiográfico”, afinal de contas, também é um versátil escritor: de par com seu ensaísmo sociopolítico, escreveu “O mago do Kremlin” (2022), vencedor do Grande Prêmio de Romance da Academia Francesa. Com certeza, Putin não se deixará fotografar com esse livro.
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