
Irrealismo
“As Últimas Notícias de um País Andino” (Viseu Ed. Maringá/PR 2025) são surreais? O autor, Gustavo Maia Gomes, nega: não são surreais, são irreais. A rigor, sugere que é o leitor que tratará de entender seu estilo literário. Mas ele mesmo o define como “irrealismo fantástico”. Li o livro, que diz ser seu primeiro de ficção, de ponta a ponta. Dei risada, às vezes. Outras vezes achei meio escatológico demais, em um dos sentidos, pois o outro sentido, o da bíblia, está mais engraçado.
Meu comentário não vai dar para entender, não. Só quando vocês lerem o livro. Fácil de ler, se bem que tem muita referência brincalhona (ou ferina) a fatos e escritos que talvez jovens de hoje desconheçam. E depois procurem conhecer. Mesmo assim, um livro mais que pós-moderno, seja lá o que isto signifique. Com 191 páginas, dá para terminar de ler no mesmo dia. Não é catatau como são outros dois livros recentes de Gustavo Maia Gomes, sobre história do nordeste açucareiro.
O primeiro calhamaço, O Trem para Branquinha (Cepe Ed. Recife 2018,564 pp.), sobre a história dos engenhos e usinas de açúcar em Alagoas, Paraíba e Pernambuco, me deixou triste com a decadência de Branquinha e confusa sobre quem é parente de quem, reclamei com GMG que ele tem parente demais. Mais tarde, o divertido Prefácio de Luiz Rodrigues Kehrle no segundo calhamaço, Uma Noite em Anhumas (Facform Recife 2024, 624 pp.) me consolou, pois ele também reparou que eram muitas as páginas e adverte sobre o caminho das pedras em que a gente pode tropeçar neste pomar de genealogias, tanto em Branquinha quanto em Anhumas, antes de conseguir ver o fluxo da história da região. Gustavo Maia Gomes, na Introdução de Uma Noite em Anhumas, explica como, em parte, o próprio título e até a sua escrita têm a ver com Werner Baer, que foi seu professor na University of Illinois. Interessado em história econômica do Brasil, onde viveu vários anos, o professor visitou a fazenda e o engenho dos ancestrais do aluno em Anhumas. O livro é um belo tributo a Werner Baer, nosso querido brasilianista, que no passado século XX (passado e longínquo) ajudou a muitos brasileiros (a mim inclusive) que chegaram a chamá-lo, de maneira carinhosa, de “braço amigo do imperialismo”.
Mas a referência aos livros da genealogia e da história econômica a rigor veio para que o possível leitor não pense que GMG é só contador de causos farsescos, surreais ou irreais. Eu gostei muito das “últimas notícias”, imagino que é porque avacalha com boa parte do que considero que merece, até precisa, ser mesmo avacalhado. Desculpem o termo, nada contra as vacas, mas nem adianta usar esculhambado, cuja origem é igualmente duvidosa. Aliás, merecedor de alguma esculhambação é o que não falta: senti falta do bebê ribórni em “As últimas notícias…” Fato é que as notícias de GMG são bem mais que sarcasmo, tem mesmo um bocado de esculacho inteligente. E é por isso mesmo que entrelaça o irreal com o real. Só alguém que já leu muita coisa e viu mais ainda poderia escrever algo assim.
E são sensacionais os desenhos “irrealisticamente fantásticos” do artista plástico Cavani Rosas. Uma excelente combinação. Mas não posso dar espóiler. Cada um terá que descobrir por si mesmo, lá no meio daquela bagunça toda, o quê e quem é a “vítima” ou o “herói” do sarcasmo fantástico de Gustavo Maia Gomes e o quanto há ou não há de realidade em seu irrealismo. Diz ele que o tipo de literatura que pratica (nesse livro) “não é política, econômica, psicológica ou histórica”. Achei que isso é feiqueniús dele, mas que cada uma vá lá ver por si próprio. Enfim, é verdade que, em “As últimas notícias…”, não encontrei nada sobre as peraltices ou estrepolias de uns e outros lá em Uá Chintôn.
Por falar em spoiler, a primeira vez que empaquei, sem saber de que falava ele, foi em uai-fai. Depois já entendi mais rápido quando apareceu uátizape, búlingue, bestisséler, ismartifone, duíte ioursselfi, feiqueniús, todos esses conceitos pós-modernos. Pena que não teve bleque fráidei. Devo apontar uma incoerência: na p. 181 deveria ser fásti fude. Talvez GMG teve medo de parecer pornográfico (ainda que alguma pornografia seja perceptível em alguns poucos dos causos relatados), e assim optou pelo original usado pelo comum dos mortais que gostam de mostrar que sabem inglês. Deve ser porque ali estava falando da Organização Mundial da Saúde.
De qualquer modo, esta resenha vai ser breve, e não é só porque não se deve dar espóiler que afugente algum comprador do livro, mas porque não conseguiria resumir nenhuma das estorinhas de futurologia. São muito malucas, Aristeu escrevendo um poema de amor com programa da máquina de lavar roupa é das mais simples. Muitas são “corretamente malucas” e “politicamente incorretas”. Porque tem tanta maluquice acontecendo, tanto absurdo, tanto maníaco por aí considerado parte da cotidiana normalidade, que os contos do absurdo de GMG são apenas absurdos mais.
Empaquei de novo quando apareceu em comentário, imaginem quem, Bodi Léry. Demorei para descobrir quem era, uma entre muitas das figuras literárias e poetas referidos. Mas foi fácil entender Monteiro Lobato pedindo ajuda (e solidariedade) a Lamartine Babo, David Nasser e Ary Barroso. Sarcasmo fantástico, irrealismo nenhum. A realidade dos que querem “atualizar” monumentos antigos da nossa cultura e da nossa história é muito mais inacreditavelmente absurda. GMG só carregou nas tintas, e até o sertão dele é mais sertão porque é de Euclides da Rosa.
Também gostei da “distopia dos petes”, mas aí é claro que meus vizinhos aqui do bairro não vão gostar nada. E isso que nem aparece como personagem um dos animais do prédio, não sei se cão ou cadela, que foi submetido a uma cirurgia e ficou com duas rodas em lugar das patas traseiras e tinha uma babá só pra cuidar dele. Nem o constante fundo musical de latidos o meu bairro. Nem o homem que vi entrar no restaurante Amazo empurrando um carrinho de bebê com três cachorrinhos. Juro que esses exemplos não vêm de minha adesão ao “irrealismo fantástico” de GMG.
Aliás, fui perguntar ao aplicativo de IA que meu professor de informática Luciano Prandini recomendou: “Qual a diferença entre ‘realismo fantástico’ e ‘irrealismo fantástico’?” Emperrou! Fiquei um tempão esperando, a página continuou em branco, até que desisti. O que não quer dizer que se alguém fizer de novo a mesma pergunta a algum outro programa de inteligência artificial baseado em LLM ele não vá responder. Como já andam verificando os especialistas em LLM, quando essas plataformas de IA não sabem a resposta a alguma pergunta, elas tratam de inventar.
O engraçado é que quando perguntei a diferença entre surreal e irreal, o Copilot pontificou: a diferença pode ser sutil, mas cada termo carrega nuances distintas. Em suma, não me ajudou a concordar com Gustavo Maia Gomes sobre seu “irrealismo fantástico”. Encontrei realidade demais no seu irrealismo. Mas, como disse, cada um que verifique por si mesmo.
Gostei! Vou verificar por mim mesmo.